Por Alberto Carlos Almeida
Nelson Rodrigues eternizou o complexo de vira-latas
como sendo um monumental complexo de inferioridade que nós, brasileiros,
sentimos quando nos comparamos com outras nacionalidades, em particular com os
naturais de países europeus ou da América do Norte. Ele afirmou que não
encontramos razões históricas ou até mesmo pessoais para cultivarmos a
autoestima quando nos comparamos com os países desenvolvidos. É fácil imaginar
por que Rodrigues viu uma explosão de autoestima quando fomos campeões em 1958.
Pela primeira vez, o Brasil era melhor do que os povos desenvolvidos em algo
que é valorizado por nós e por eles.
Ser inferior ou superior depende sempre da régua,
depende sempre daquilo que se mede. A China é a campeã mundial, e sempre será -
a não ser que o país se esfacele em vários -, em termos populacionais. A Rússia
tem o maior território, os Estados Unidos têm o maior PIB, talvez a França
tenha os melhores vinhos e a Itália, as melhores massas. Da mesma maneira, do
ponto de vista individual, há os mais ricos, os mais inteligentes, os mais
felizes. Tudo isso pode coincidir em uma só pessoa, mas o mais provável é que
não seja assim.
No que diz respeito a países, a comparação se torna
mais complexa quando adicionamos a história. Pela régua econômica, a Coreia do
Sul foi até muito recentemente um país subdesenvolvido e se tornou parte do
clube dos países desenvolvidos. Não se sabe o que se perdeu nesse processo.
Terão sido eles mais alegres no passado? Não importa. Ora, não importa se
considerarmos que algumas réguas de medição valem mais do que outras. O
desenvolvimento econômico e a riqueza per capita são mais valorizados do que,
por exemplo, ter a melhor culinária. Muitos dirão que o julgamento da culinária
é inteiramente subjetivo, ao passo que o desenvolvimento se mede por meio de números.
Isso é tão verdadeiro quanto afirmar que escolher uma régua de comparação e não
outra também é subjetivo.
Max Weber consagrou a análise que aponta o
predomínio das relações econômicas sobre as antigas relações de parentesco,
locais, de vizinhança, entre outras. Hoje, quando alguém pergunta o que
fazemos, respondemos dizendo qual é nossa profissão e com o que trabalhamos.
Nem sempre foi assim. Foi-se o tempo em que nossa identidade principal era
conferida pelo pertencimento a uma tribo, ter nascido em determinada cidade ou
região, ou ser membro de uma família ou clã. Após o surgimento do
protestantismo, os sobrenomes, ou nomes de família, passaram a ter como base a
profissão. O sobrenome mais comum no Reino Unido e nos Estados Unidos, Smith,
vem da profissão de ferreiro. Já o sobrenome mais comum em Portugal é o mesmo
deste colunista, Almeida, e significa planície, chão plano ou mesa. Não tem
nada a ver com profissão.
Não pertencemos à tradição protestante, luterana ou
calvinista, muito menos somos parte da família de países anglo-saxões, mas o
mundo, e não somente nós, brasileiros, é constantemente mensurado pela régua do
sucesso econômico. Os brasileiros acreditam ser piores do que as nações
desenvolvidas quando mensurados pela régua do sucesso econômico. A grande
maioria de nossa população, 58%, considera que o Brasil é um país mais pobre do
que Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos. Somos piores do que eles
também em um atributo frequentemente associado ao desenvolvimento, a capacidade
de organização: 49% dos brasileiros têm a percepção de que somos menos
organizados. Diante dessa autoimagem, aqueles que ainda acreditam em uma Copa
do Mundo organizada deveriam deixar de lado suas esperanças.
Se a régua for outra, a visão que temos de nós mesmos
em nada se assemelha ao complexo de vira-latas; é o oposto. Nada menos do que
80% dos brasileiros acham o país mais alegre do que Alemanha, França,
Inglaterra e Estados Unidos. Pensamos da seguinte maneira: somos pobres, mas
somos felizes. Outra leitura é que acreditamos que de nada adianta ser rico se
a vida não for alegre. O Carnaval está aí e não se vê nada semelhante nos
países desenvolvidos. Os brasileiros admitem que a vocação de nosso país não é
o sucesso econômico, mas desfrutar de uma vida alegre. Isso é reforçado pela
visão de 71% da população de que, em se tratando de futebol, somos melhores do
que eles.
Estão aí os ingredientes de uma Copa do Mundo de
sucesso no Brasil: ser mais alegre do que os outros e ser melhor no futebol. É
preciso mais? Se a resposta for afirmativa, então caminharemos para o fracasso
- porque não seremos capazes de prover para a Copa uma organização germânica ou
saxã. De alguma maneira, é essa a exigência que a Fifa nos faz. A sede da
entidade máxima do futebol é na Suíça de Calvino. Nada contrasta mais com o
Brasil. É bem provável que os dirigentes da Fifa considerem que já relaxaram
bastante seus critérios e exigências para o Brasil. Creio que poderiam relaxar
mais ainda e poderiam passar a exigir de nós aquilo que fazemos melhor.
Surpreende a incapacidade de nossa elite de tirar
proveito de um evento como uma Copa do Mundo. Diante de nossas características
nacionais, diante de nossa autoimagem, o mais adequado seria buscar ressaltar
nossos pontos fortes e deixar de lado nossas fraquezas. Os americanos não
divulgaram aos quatro cantos que aqueles que fossem assistir lá à Copa de 1994
corriam o risco de serem assassinados por um "serial killer" ou mesmo
de serem vítimas em massacres semelhantes ao de Columbine. Menos grave, não
disseram que seria grande o risco de ser processado por assédio sexual se, ao
comemorar um gol de sua seleção, o torcedor tentasse abraçar ou beijar uma
americana que estivesse ao seu lado.
Todos os países têm virtudes e defeitos. Um grande
evento tem o alcance de aumentar no longo prazo a visibilidade do país e, com
isso, o fluxo de turistas estrangeiros. Se for assim, todos ganham. A melhor
maneira de atingir esse objetivo é salientar as virtudes e esquecer os
defeitos. Mas nossa elite e grande parte de nossos formadores de opinião fazem
justamente o inverso. Trata-se do famoso tiro no pé. Copa do Mundo e Olimpíada
são eventos raros, únicos. Dificilmente o Brasil será novamente sede de tais
competições. É difícil compreender porque não poderíamos tirar o maior proveito
possível de ambos.
O gasto com os estádios se tornou o grande símbolo
de desperdício de recursos públicos. As mazelas que temos não seriam resolvidas
se toda a energia e recursos investidos na Copa fossem direcionados para
transporte, saúde e segurança pública. Os manifestantes que associam os gastos
com a Copa a tais problemas deveriam ter como alvo a previdência. É para ela
que vão os recursos que faltam em outras áreas.
Em alguma medida, há uma partidarização, ao menos
junto a certos públicos, quando o tema é a Copa do Mundo. Aqueles que desejam
que Dilma seja derrotada em outubro torcem para que a Copa seja um fracasso
retumbante, que sua organização seja um desastre e que o Brasil seja eliminado,
preferencialmente cedo, na segunda fase, quando tende a cruzar com Holanda ou
Espanha. Diante disso, os protestos seriam inevitáveis e, a exemplo do que
ocorreu em junho de 2013, a popularidade do governo despencaria e a oposição
caminharia para vencer as eleições.
Façamos um exercício. Imaginemos que a Copa e a
Olimpíada tivessem sido trazidas para o Brasil durante o governo Fernando
Henrique e tivessem ocorrido também neste período. Pode ser que muitas das
críticas hoje existentes não tivessem tanto eco. Note-se que a eventual
partidarização da Copa do Mundo não beneficia ninguém, nem ao governo nem à
oposição. Os protestos ocorridos em junho fizeram desabar a popularidade do
governo Dilma, mas também de todos os outros governantes. Na época, a oposição
não veio a público, nem para defender os manifestantes nem para atacar o
governo. Isso não ocorreu por acaso. Todos estão no mesmo barco - tanto no que
se refere aos protestos e seu alvo, quanto à Copa do Mundo e seus
beneficiários.
Em tempo de Carnaval, vale recordar o verso de Noel
Rosa ao defender a escola de samba de seu coração, a Vila Isabel, quando disse
que a Vila não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também.
Apliquemos isso ao Brasil e admitamos que nós, brasileiros, não queremos ser
melhores do que ninguém, só queremos mostrar que também somos capazes de fazer
uma Copa de sucesso, à nossa maneira.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do
Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
Leia mais em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário