quarta-feira, 5 de junho de 2013

O Bolsa Família e outras bolsas


O recente episódio dos boatos de extinção do Bolsa Família e o impacto coletivo que isso causou, quando milhares de pessoas em vários Estados correram para as agências da Caixa a fim de sacar o benefício, motivou falas de políticos e formadores de opinião, uns defendendo e outros criticando essa política social. A presidente Dilma veio a público em defesa do benefício e disse que não se tratava de pura e simples distribuição de recursos, como se fosse uma “bolsa esmola”, mas, sim, de uma política social muito bem pensada. Aécio Neves, futuro candidato do PSDB a presidente, disse que o Bolsa Família foi criado pelo seu partido. As palavras de Aécio foram muito claras: “Se tivéssemos um jeito de tirar o Bolsa Família, pegar no berço e fazer o exame de DNA, veríamos que o pai dele é o PSDB.

Nas duas últimas campanhas eleitorais presidenciais, em 2006 e 2010, o Bolsa Família foi um tema importante do PT e do PSDB. Não há no Brasil, hoje, uma força política relevante que proponha acabar com o benefício. O máximo que se propõe é a criação de uma suposta “porta de saída”, isto é, algum tipo de política social paralela ao Bolsa Família, como medidas para gerar empregos para os beneficiários do programa, de tal maneira que as famílias, com o passar dos anos, deixem de precisar do benefício. A busca de uma porta de saída tem a ver com a crítica de que o Bolsa Família não passa de um programa assistencialista.

Recordar é viver. Em 2006, ninguém menos do que o presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, d. Geraldo Magela, criticou o caráter assistencialista do programa. O líder religioso afirmou que “o Bolsa Família é assistencialismo, não é promoção humana. Em alguns casos, o programa estimula as pessoas a não fazerem nada, em troca de R$ 60, R$ 90 por mês. O que nós [a CNBB] queremos é trabalho e educação para todos. Será fácil encontrar os inúmeros críticos do Bolsa Família com base no argumento geral de que causaria acomodação nas famílias pobres; basta fazer uma pesquisa rápida na internet.

Há no Brasil a concepção predominante de que tudo que vem de fora é melhor do que o que é criado ou executado aqui. Trata-se do que Nelson Rodrigues batizou de “complexo de vira-latas, que o dramaturgo definiu assim: Por ‘complexo de vira-lata’ entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. Para muitos, o Bolsa Família entra no leque de provas de que somos inferiores. O argumento, nesse caso, é simples: só mesmo no Brasil se adotaria uma política social que resultaria na acomodação dos pobres face ao trabalho e à educação. 





O Brasil adotaria políticas sociais que resultariam na dependência, ao passo que, por exemplo, o Reino Unido pós-Thatcher seria o exemplo de dinamismo e de alocação eficiente de recursos. A maioria dos críticos do Bolsa Família também idealiza o que acontece em outros países. Nada mais distante da realidade do que achar que somente no Brasil os mais pobres recebem algum tio de auxilio do governo para sobreviver. Na verdade, o Brasil é um dos países que menos auxílio presta aos mais pobres. Mais uma vez, o exemplo do Reino Unido é paradigmático: lá existe até mesmo o bolsa funeral.

Isso mesmo. Chama-se, em inglês,  funeral payments. O bolsa funeral britânico pode ser utilizado para cobrir despesas com velório, cremação, atestado de óbito, compra do caixão, flores e até mesmo viagem de parente para organizar o enterro. A quantia por funeral é de até 700 libras. Informações detalhadas sobre o benefício podem ser encontradas em www.gov.uk/funeral-payments/overview. O morto, um dos beneficiários do bolsa funeral, terá direito a um enterro digno e jamais poderá ser acusado de acomodação causada por uma política social.

No Reino Unido existe também o bolsa aquecimento no inverno. É como se no Brasil existisse um benefício do governo para que as pessoas pagassem o ar-condicionado no verão. Para que um britânico seja beneficiário do bolsa aquecimento no inverno (winter fuel payment) não é preciso ser pobre; basta ser idoso. Ou seja, todos os que têm mais de 80 anos, independentemente da renda, podem receber de 100 a 300 libras no inverno, mesmo se não morarem no Reino Unido. Há também o bolsa clima frio (www.gov.uk/cold-weather-payment), que cada britânico pode solicitar caso a temperatura da região onde mora fique igual ou menor que zero grau Celsius. Vale também a previsão do tempo. Se, por sete dias, a previsão for essa, a pessoa pode requisitar o bolsa clima frio. Parece piada que benefícios desse tipo existam no Reino Unido, mas quem quiser confirmar os encontrará na internet, na página que apresenta todos os benefícios sociais do governo (www.gov.uk/browse/benefits).

O Reino Unido também tem bolsa família, lá denominado child benefit. Trata-se de um benefício para famílias na qual a renda individual do chefe seja menor do que 50 mil libras por ano. Para cada criança ou jovem abaixo de 20 anos de idade, desde que matriculado na escola ou em algum tipo de treinamento, o governo paga 20 libras por semana. Isso é pago para a primeira criança. Para quem tem mais filhos são adicionadas 13 libras por semana, por criança.

O Reino Unido gasta muito mais do que nós, brasileiros, com numerosos benefícios sociais. Não há a menor dúvida de que a rede de proteção social deles é bem mais ampla do que a nossa. Sabe-se também que há correlação entre bem-estar social e, por exemplo, violência. As sociedades menos desiguais e com as mais amplas redes de proteção social tendem a ter índices menores de criminalidade. Não é possível ter tudo. Não dá para abolir o Bolsa Família e, ao mesmo tempo, não ter criminalidade elevada. As políticas repressivas são importantes, mas não resolvem sozinhas a criminalidade, em particular no longo prazo.

Alguns poderão afirmar: no Brasil nada funciona; temos Bolsa Família e a criminalidade ainda assim é alta. Cabem aqui duas ponderações. A primeira é mais do que óbvia: não fosse o Bolsa Família, a criminalidade provavelmente seria muito mais elevada. A outra ponderação tem a ver com a abrangência da rede de proteção social. Talvez fosse preciso, para diminuir a violência, adotar também o bolsa funeral, o bolsa ar-condicionado no verão e outros benefícios equivalentes aos britânicos.

Novamente, cumpre sublinhar que é impossível ter tudo. No Brasil de hoje, o combate à inflação por meio do aumento de juros pode resultar em desemprego mais elevado. Desemprego crescente ou alto resulta em mais violência. Blindar os automóveis, andar com seguranças e controlar horários e locais frequentados não resolve tudo — sem falar que não é uma forma agradável de viver.

É fato que as duas principais forças políticas do Brasil, PT e PSDB, convergiram acerca de várias políticas, tanto econômicas quanto sociais. Há consenso acerca de que a inflação precisa ser combatida, de que não se pode dar trégua a ela. Há consenso de que são necessárias políticas sociais como o Bolsa Família. Aliás, o PSDB criou a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), que assegura uma renda mínima para os aposentados pobres. É também consenso que o seguro-desemprego deve ser mantido.

O Brasil, porém, é bem diferente da Europa. Nossa rede de proteção social jamais se assemelhará à existente nos países europeus. Duvido também que nossa criminalidade se torne um dia tão baixa quanto a deles. Nosso consenso é diferente do europeu. Em termos de políticas sociais, tudo indica que o Brasil já está e ficará entre Estados Unidos e Europa. Teremos mais benefícios do que nos Estados Unidos e menos do que na Europa. Essa é uma escolha social, resultado da interação entre a sociedade e seus representantes. É isso que faz do Brasil o Brasil.


Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de A Cabeça do Brasileiro.
E-mail: alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida

Nenhum comentário:

Postar um comentário