O recente episódio dos boatos de extinção do Bolsa Família
e o impacto coletivo que isso causou, quando milhares de pessoas em vários
Estados correram para as agências da Caixa a fim de sacar o benefício, motivou
falas de políticos e formadores de opinião, uns defendendo e outros criticando
essa política social. A presidente Dilma veio a público em defesa do benefício
e disse que não se tratava de pura e simples distribuição de recursos, como se
fosse uma bolsa esmola, mas, sim, de uma política social muito bem pensada.
Aécio Neves, futuro candidato do PSDB a presidente, disse que o Bolsa Família
foi criado pelo seu partido. As palavras de Aécio foram muito claras: Se tivéssemos um jeito de tirar o Bolsa
Família, pegar no berço e fazer o exame de DNA, veríamos
que o pai dele é o PSDB.
Nas duas últimas campanhas eleitorais presidenciais, em
2006 e 2010, o Bolsa Família foi um tema importante do PT e do PSDB. Não há no
Brasil, hoje, uma força política relevante que proponha acabar com o benefício.
O máximo que se propõe é a criação de uma suposta porta de saída, isto é,
algum tipo de política social paralela ao Bolsa Família, como medidas para
gerar empregos para os beneficiários do programa, de tal maneira que as famílias,
com o passar dos anos, deixem de precisar do benefício. A busca de uma porta de
saída tem a ver com a crítica de que o Bolsa Família não passa de um programa
assistencialista.
Recordar é viver. Em 2006, ninguém menos do que o
presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, d. Geraldo Magela,
criticou o caráter assistencialista do programa. O líder religioso afirmou que o
Bolsa Família é assistencialismo, não é promoção humana. Em alguns casos, o
programa estimula as pessoas a não fazerem nada, em troca de R$ 60, R$ 90 por
mês. O que nós [a CNBB] queremos é trabalho e educação para todos. Será fácil
encontrar os inúmeros críticos do Bolsa Família com base no argumento geral de
que causaria acomodação nas famílias pobres; basta fazer uma pesquisa rápida na
internet.
Há no Brasil a concepção predominante de que tudo que vem
de fora é melhor do que o que é criado ou executado aqui. Trata-se do que
Nelson Rodrigues batizou de complexo de vira-latas, que o dramaturgo definiu
assim: Por complexo de vira-lata entendo eu a inferioridade em que o
brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é
um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não
encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima. Para muitos, o
Bolsa Família entra no leque de provas de que somos inferiores. O argumento,
nesse caso, é simples: só mesmo no Brasil se adotaria uma política social que
resultaria na acomodação dos pobres face ao trabalho e à educação.
O Brasil adotaria políticas sociais que resultariam na
dependência, ao passo que, por exemplo, o Reino Unido pós-Thatcher seria o
exemplo de dinamismo e de alocação eficiente de recursos. A maioria dos
críticos do Bolsa Família também idealiza o que acontece em outros países. Nada
mais distante da realidade do que achar que somente no Brasil os mais pobres
recebem algum tio de auxilio do governo para sobreviver. Na verdade, o Brasil é
um dos países que menos auxílio presta aos mais pobres. Mais uma vez, o exemplo
do Reino Unido é paradigmático: lá existe até mesmo o bolsa funeral.
Isso mesmo. Chama-se, em inglês, funeral
payments. O bolsa funeral britânico pode ser utilizado para cobrir despesas
com velório, cremação, atestado de óbito, compra do caixão, flores e até mesmo
viagem de parente para organizar o enterro. A quantia por funeral é de até 700
libras. Informações detalhadas sobre o benefício podem ser encontradas em www.gov.uk/funeral-payments/overview. O morto, um dos beneficiários do bolsa funeral, terá
direito a um enterro digno e jamais poderá ser acusado de acomodação causada
por uma política social.
No Reino Unido existe também o bolsa aquecimento no
inverno. É como se no Brasil existisse um benefício do governo para que as
pessoas pagassem o ar-condicionado no verão. Para que um britânico seja
beneficiário do bolsa aquecimento no inverno (winter fuel payment) não é
preciso ser pobre; basta ser idoso. Ou seja, todos os que têm mais de 80 anos,
independentemente da renda, podem receber de 100 a 300 libras no inverno, mesmo
se não morarem no Reino Unido. Há também o bolsa clima frio (www.gov.uk/cold-weather-payment), que
cada britânico pode solicitar caso a temperatura da região onde mora fique
igual ou menor que zero grau Celsius. Vale também a previsão do tempo. Se, por
sete dias, a previsão for essa, a pessoa pode requisitar o bolsa clima frio.
Parece piada que benefícios desse tipo existam no Reino Unido, mas quem quiser
confirmar os encontrará na internet, na página que apresenta todos os
benefícios sociais do governo (www.gov.uk/browse/benefits).
O Reino Unido também tem bolsa família, lá denominado child benefit. Trata-se de um benefício
para famílias na qual a renda individual do chefe seja menor do que 50 mil
libras por ano. Para cada criança ou jovem abaixo de 20 anos de idade, desde
que matriculado na escola ou em algum tipo de treinamento, o governo paga 20
libras por semana. Isso é pago para a primeira criança. Para quem tem mais
filhos são adicionadas 13 libras por semana, por criança.
O Reino Unido gasta muito mais do que nós, brasileiros, com
numerosos benefícios sociais. Não há a menor dúvida de que a rede de proteção
social deles é bem mais ampla do que a nossa. Sabe-se também que há correlação
entre bem-estar social e, por exemplo, violência. As sociedades menos desiguais
e com as mais amplas redes de proteção social tendem a ter índices menores de
criminalidade. Não é possível ter tudo. Não dá para abolir o Bolsa Família e,
ao mesmo tempo, não ter criminalidade elevada. As políticas repressivas são
importantes, mas não resolvem sozinhas a criminalidade, em particular no longo
prazo.
Alguns poderão afirmar: no Brasil nada funciona; temos
Bolsa Família e a criminalidade ainda assim é alta. Cabem aqui duas
ponderações. A primeira é mais do que óbvia: não fosse o Bolsa Família, a
criminalidade provavelmente seria muito mais elevada. A outra ponderação tem a
ver com a abrangência da rede de proteção social. Talvez fosse preciso, para
diminuir a violência, adotar também o bolsa funeral, o bolsa ar-condicionado no
verão e outros benefícios equivalentes aos britânicos.
Novamente, cumpre sublinhar que é impossível ter tudo. No
Brasil de hoje, o combate à inflação por meio do aumento de juros pode resultar
em desemprego mais elevado. Desemprego crescente ou alto resulta em mais violência.
Blindar os automóveis, andar com seguranças e controlar horários e locais
frequentados não resolve tudo sem falar que não é uma forma agradável de
viver.
É fato que as duas principais forças políticas do Brasil,
PT e PSDB, convergiram acerca de várias políticas, tanto econômicas quanto
sociais. Há consenso acerca de que a inflação precisa ser combatida, de que não
se pode dar trégua a ela. Há consenso de que são necessárias políticas sociais
como o Bolsa Família. Aliás, o PSDB criou a Lei Orgânica de Assistência Social
(Loas), que assegura uma renda mínima para os aposentados pobres. É também
consenso que o seguro-desemprego deve ser mantido.
O Brasil, porém, é bem diferente da Europa. Nossa rede de
proteção social jamais se assemelhará à existente nos países europeus. Duvido
também que nossa criminalidade se torne um dia tão baixa quanto a deles. Nosso
consenso é diferente do europeu. Em termos de políticas sociais, tudo indica
que o Brasil já está e ficará entre Estados Unidos e Europa. Teremos mais benefícios
do que nos Estados Unidos e menos do que na Europa. Essa é uma escolha social,
resultado da interação entre a sociedade e seus representantes. É isso que faz
do Brasil o Brasil.
Alberto Carlos Almeida,
sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de A Cabeça do Brasileiro.
E-mail:
alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida
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