quarta-feira, 10 de outubro de 2018

A disrupção do cooperativismo financeiro.


Não são só as fintechs que têm tirado o sono das instituições financeiras tradicionais; uma silenciosa inovação de ruptura, menos tecnológica e mais social, vem sendo feito pelas cooperativas de crédito, que ganham cada vez mais capilaridade.

A cidade de Ceres, com seus 22 mil habitantes, fica na região central de Goiás. Distante 180 quilômetros de Goiânia, o município gira em torno de uma intensa atividade agrícola. É lá que vive o biomédico João Barroso Diniz, que, aos 38 anos, também trabalha como pecuarista. Nos dias úteis, ele dificilmente para em casa. Quando não está no laboratório, está no campo – ou no banco. Isso mesmo. É que mais do que simples cliente, Diniz é um dos 8,2 mil sócios do Sicoob Unicentro Norte Goiano. Mas não se trata de um banco tradicional. Tampouco é uma fintech. Trata-se de uma cooperativa financeira, um tipo de negócio financeiro que anda a passos largos Brasil afora.
Comum em países da Europa e da América do Norte, o modelo cooperativo tem ganhado escala no Brasil, com crescimento entre 15% e 20% ao ano. De 1997 para cá, o setor saiu de uma participação de 0,35% para quase 4% do total de operações registradas pelo Sistema Financeiro Nacional (SFN). Pode parecer pouco, mas considerando que R$ 4 em cada R$ 5 são movimentados exclusivamente por cinco instituições – Itaú, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Santander –, as cooperativas vão muito bem, obrigado. Agregadas, elas formariam hoje o sexto maior banco de varejo do País, com R$ 177 bilhões de ativos, de acordo com a consultoria alemã Roland Berger. 
Além do Sicoob, completam a lista das maiores cooperativas de crédito do Brasil Sicredi, Unicredi e Cresol. Em comum, todas carregam uma forte atuação regional. Ainda mais em localidades como Ceres, que até não muito tempo atrás era atendida exclusivamente pelos hoje quase inexistentes bancos estaduais. Com a concentração do mercado, os grandes bancos preferiram focar as cidades grandes e médias. Quando o interior ficou desassistido, abriu-se uma oportunidade para as cooperativas, já ambientadas em nichos como agricultura e saúde. “Elas compõem a realidade da região em que estão inseridas, promovendo uma melhor inclusão financeira e desenvolvendo soluções voltadas ao crescimento da comunidade”, explica Harold Espínola, chefe do Departamento de Supervisão de Cooperativas e de Instituições Não Bancárias (DESUC) do Banco Central (BC). 
Além do atendimento personalizado a agricultores e moradores locais, a cobrança de taxas de juros mais baixas por parte das cooperativas também faz diferença. Enquanto um banco convencional chega a impor 12,8% de juros mensais sobre o cheque especial, nessas empresas o índice não ultrapassa os 6,5%. Taxas de seguro, consórcio ou mesmo de empréstimo são igualmente mais baixas quando comparadas às dos grandes varejistas. O regime tributário também difere daquele dos bancos, já que as cooperativas são isentas de tributos como PIS, Cofins e contribuição social sobre o lucro líquido. “Em um ano, nosso cooperado pode economizar até R$ 3 mil só em movimentações financeiras”, afirma Henrique Vilares, presidente do Sicoob Confederação.
A cereja do bolo, no entanto, está no corpo societário. Cada cooperado é obrigado, conforme resolução do BC, a comprar uma cota do negócio. Isso o credencia a participar das decisões políticas e até mesmo operacionais da instituição – algo que não ocorre em banco algum. Nas Assembleias Gerais Ordinárias (AGO), encontros que elegem gestores e nos quais se apresentam balanços, todo cooperado tem direito de voto igual aos demais – não importa o capital investido ou o percentual de participação. De quebra, ele ainda ganha com o rateio da sobra, o equivalente aos dividendos pagos pelos bancos aos seus acionistas. “É vantagem demais para ficar de fora do sistema”, justifica Diniz, o cooperado de Ceres. 
Timing
Dizem que timing é tudo para uma inovação – e talvez seja mesmo. O cooperativismo de consumo, por exemplo, nasceu em 1844, quando 28 operários somaram suas economias e abriram uma loja de itens básicos na Inglaterra, a Sociedade Equitativa dos Pioneiros de Rochdale. Mas, só agora, na era da economia compartilhada e do propósito, ele está ganhando o status de uma promissora disrupção.
Na Sociedade de Rochdale, os cooperados compravam itens em conjunto e, depois, dividiam os resultados. A ideia prosperou e, passados 12 anos, a instituição contava com 3,5 mil membros. O exemplo se espalhou para outros países e chegou ao Brasil em 1889. Por aqui, a pioneira foi a fundação da Cooperativa Econômica dos Funcionários Públicos de Ouro Preto, de Minas Gerais. Tratou-se do estouro da boiada para o surgimento de várias cooperativas no País, inclusive financeiras. 
Na década de 1920, descendentes japoneses criaram em São Paulo a Cooperativa Agrícola de Cotia (CAC), orientada à produção de batata. Nos anos seguintes, a organização cresceu e diversificou sua atuação, chegando à década de 1980 como uma das 50 maiores empresas do Brasil – e o título de maior cooperativa do mundo. O negócio prosperou até 1994, quando a CAC decretou falência depois de contrair empréstimos e não conseguir bancá-los. Por conta disso, o sistema cooperativista chegou a ser colocado em dúvida. 
Hoje, entretanto, é praticamente impossível levar uma cooperativa à bancarrota – principalmente se ela for do segmento financeiro. Primeiro porque a gestão é autocontrolada, graças à participação direta dos cooperados em assembleias e auditorias. Segundo porque o BC a fiscaliza e exige transparência nos demonstrativos – o que facilita o acompanhamento dos associados. Por fim, há ainda a garantia do FGCoop, o Fundo Garantidor do Cooperativismo de Crédito. O mecanismo protege tanto depositantes quanto investidores em caso prejuízos, intervenção ou liquidação extrajudicial. “Existia risco nas cooperativas em um período em que não havia regulação”, salienta Derli Schmidt, diretor-geral da Faculdade de Tecnologia do Cooperativismo (Escoop), primeira instituição voltada exclusivamente ao segmento no Brasil, com sede em Porto Alegre. 
Ecossistema
Estima-se que quase 7 mil cooperativas operem em 13 diferentes setores da economia no Brasil, a maioria delas nas regiões Sul e Sudeste. Ao todo, elas empregam cerca de 350 mil pessoas e contam com 13 milhões de cooperados. Desse total, 9 milhões estão vinculados ao segmento financeiro. 
Há, portanto, 1.019 cooperativas financeiras, sendo 980 delas as chamadas singulares – que podem ter atuação independente ou integrar um sistema, como é o caso do Unicentro Norte Goiano, membro do Sistema Sicoob, citado no começo desta reportagem. O ecossistema ainda é composto por 35 centrais e quatro confederações, sendo que ambos são grupos formados por pelo menos três cooperativas distintas.
O desenho de ecossistema, com vários componentes autônomos em vez de um elemento centralizador,  segue o paradigma do cooperativismo: é preciso que cada negócio seja regional e focado na comunidade próxima. “Quem planta maçã em Santa Catarina tem uma realidade diferente de quem planta chá no Vale do Ribeira, em São Paulo”, exemplifica Manfred Alfonso Dasenbrock. Presidente do conselho do Sistema Sicredi, formado por 116 cooperativas de crédito, cinco centrais e 3,7 milhões de cooperados, Dasenbrock diz que essa particularidade é uma das razões pela qual as cooperativas não têm uma mesma taxa para produtos e serviços.
Traduzindo do “cooperativês”, uma unidade do Sicredi do Mato Grosso provavelmente pratica tarifas diferentes daquelas cobradas no Rio Grande do Sul, por conta das peculiaridades de cada região. 
Escalabilidade
Os ganhos costumam acompanhar a capilaridade do setor. Só no Paraná, estado com forte vocação cooperativista, o ano de 2016 rendeu ativos de R$ 32,3 bilhões no segmento financeiro. O valor representa um crescimento de 23,5% ante os R$ 26,2 bilhões do ano anterior. Fala-se em curva de crescimento exponencial. No Brasil como um todo, houve expansão de 18,1% nos ativos totais – chegando à monta de R$ 154,1 bilhões. Desse volume, 71% dos recursos são oriundos de cooperativas de crédito rural, 24% de unidades crédito mútuo e 5% de instituições de livre admissão. As informações são do Panorama do Sistema Nacional de Crédito Cooperativo, relatório divulgado pelo BC com informações relativas a 2016. [A reportagem não traz dados consolidados de 2017 devido à temporada de assembleias, realizada durante o fechamento desta edição].  
E o melhor dos dados é o potencial inexplorado. A participação das cooperativas no Sistema Financeiro Nacional ainda é modesta perto do que acontece em países da Europa, por exemplo. Enquanto por aqui a representatividade é de 4%, como foi dito, na França o índice beira os 50%. Por lá, as cooperativas também são chamadas de bancos populares. Na Alemanha, pioneira mundial no cooperativismo de crédito, o market share dessas operações é de 20%. 
Os argumentos de venda das cooperativas são convincentes, como os relativos ao spread bancário, como é chamada a diferença entre o que os bancos pagam para captar dinheiro e o que eles ganham ao emprestar. Enquanto França e Alemanha têm spread bancário de 4,7% e 5,5%, respectivamente, no Brasil o indicador chega a 39,6% – sete vezes acima. “É uma anomalia gigantesca o que acontece aqui”, critica Marco Aurélio Almada, presidente do Bancoob e primeiro vice-presidente da Confederação Internacional dos Bancos Populares (CIBP). “Só a garantia de taxas mais conscientes já é justificativa suficiente para a existência e o crescimento do cooperativismo financeiro no Brasil.”
O Banco Central também tem contribuído para a escalada. O divisor de águas aconteceu em 2009, quando uma lei complementar permitiu a livre admissão de associados. Antes, a adesão ao sistema era feita conforme a atividade econômica. O Sicredi, por exemplo, só atendia produtores rurais; o Sicoob, só microempresários. Agora, qualquer um pode se associar a qualquer cooperativa de sua preferência – e a concorrência se instalou. Não à toa, o Sicredi inaugurou, em 2016, uma agência em plena Avenida Paulista, coração financeiro da América Latina. 
Em janeiro de 2018, houve mais um empurrão ao cooperativismo, e as consequências devem ser sentidas a partir de maio. Uma nova lei complementar, a ser regulamentada, autorizou prefeituras e autarquias a movimentarem recursos em cooperativas. “Além de reconhecer nosso serviço, a abertura permitirá que as cooperativas cheguem a novas populações”, avalia Henrique Vilares, do Sicoob. 
Profissionalização
Paradoxalmente, nos últimos dez anos, caiu o número de cooperativas existentes no Brasil – de 1.447 para 1.019. Isso decorre da alteração de marcos regulatórios, o que conferiu maior profissionalismo às operações. Essas instituições também deixaram de se dedicar somente ao crédito  – o portfólio se diversificou e se sofisticou, incluindo serviços como seguros, consórcios e aplicações, o que também exigiu mais profissionalismo da parte da gestão. 
Assim, embora a pressão por lucro passe longe do que se vê nos bancos tradicionais, a maioria dos executivos das cooperativas costuma vir desses bancos, contratados para gerar resultado, incrementar patrimônio, realizar bons investimentos e controlar custos. 
Outro aspecto interessante é o papel dos conselhos constituídos por associados, não muito diferentes daquele dos conselhos de administração das empresas de capital aberto. Para Robson Mafioletti, superintendente da Organização das Cooperativas do Paraná (Ocepar),  “a separação entre executivos e membros diretores é o que fez a coisa andar”.
Treinamento virou uma palavra de ordem no segmento. Dos gestores aos representantes eleitos pelos associados, todos participam periodicamente de capacitações profissionais. Observa-se isso na inauguração da Escoop, em Porto Alegre, faculdade que oferece graduação e MBA na área inspirada na Alemanha, onde existem nove escolas de gestão cooperativista. Ao fim da capacitação, os alunos participam de um intercâmbio na Alemanha, inclusive. “Criamos uma faculdade moderna não só para instruir os cooperados e gestores, mas para fazer ciência numa área de crescimento irreversível”, observa o diretor Derli Schmidt. 
Propósito
Quando o padre suíço Theodor Amstad fundou a primeira cooperativa de crédito do Brasil, em 1902, esse sistema já mostrava seu lado social. Sediada na região da serra gaúcha, em Nova Petrópolis, a Sicredi Pioneira buscava melhorar as vidas dos moradores do município, que não contava com nenhum banco na época. 
Se as fintechs utilizam a tecnologia geradora de conveniência para concorrer com os bancos, talvez as cooperativas financeiras de hoje tenham no propósito seu mais forte apelo para concorrer com as fintechs e os bancos. 

Fonte: Revista HSM

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