domingo, 7 de julho de 2013

Depois da mão, será a vez do braço

Por Alberto Carlos Almeida 28/06/2013

O Brasil é um país extremamente sujeito ao pensamento mágico. Essa forma de pensar ocorre quando as pessoas acreditam na relação entre a realização de certos rituais e a obtenção de determinadas recompensas. A mais evidente em nossa vida privada é a crença de que rezas, orações e bênçãos sobre o doente acabarão por trazer a cura. Trata-se de um pensamento mágico muito evidente, claro e direto. Há, contudo, formas mitigadas de pensamento mágico. Estamos diante delas em inúmeras análises sobre os protestos dos últimos dias e seus resultados. Há quem já tenha afirmado que o Brasil mudou apenas em virtude de uma ou duas semanas de manifestações.
Um segmento importante da mídia anunciou, logo após os atentados do 11 de Setembro, que dali em diante o mundo mudaria, não seria mais o mesmo. Aliás, a mudança mais evidente na vida das pessoas depois daquele episódio foi o aumento do rigor nos check-ins e embarques de voos internacionais e voos domésticos nos Estados Unidos. O mundo não mudou. Aquelas análises não passavam de uma versão do pensamento mágico.

Agora, mais uma vez, o pensamento mágico se manifesta em análises sobre um fenômeno social e político. Afirmam os crentes no não observável que o Brasil pós-protestos será diferente do Brasil pré-protestos. Protestos são rituais que, como muitos acreditam, uma vez realizados, resultam na obtenção de alguma graça. No caso, a graça não será a cura de uma doença de uma pessoa específica, mas de uma nação inteira, a doença do mau uso dos recursos públicos, da exploração da população pelos políticos e coisas semelhantes. Ora, quem acredita que as coisas vão ocorrer assim fará melhor se diminuir logo suas expectativas, porque a frustração tenderá a ser grande.
O Brasil já teve inúmeras manifestações que mobilizaram um imenso contingente de pessoas. Nenhuma resultou em mudança imediata, em algo que se assemelhe a uma graça divina. Todas, porém, foram episódios de um grande processo estrutural de transformação. Muitas mudanças desejadas só vieram a ocorrer depois de meia, uma ou mais décadas. As greves do ABC, no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, foram resultado da lenta transformação pela qual o Brasil passara nas duas décadas anteriores: formara-se nesse período uma grande massa crítica de trabalhadores do setor privado, que se organizaram em sindicatos. Pela primeira vez, o Brasil tinha sindicalismo do setor privado industrial.
O sindicalismo que agitou as massas nos anos 1960 era do setor público. Tutelado, portanto, pelo governo. As reformas de base de João Goulart foram defendidas por sindicatos que ou representavam diretamente funcionários públicos, ou representavam categorias que dependiam de recursos do governo para obter aumentos salariais. Não foi isso que ocorreu em São Bernardo do Campo e em municípios vizinhos quando Lula se tornou o principal líder sindical daquele período.
As greves tampouco resultaram em mudanças imediatas, mas permitiram que o PT fosse fundado e iniciasse sua trajetória eleitoral rumo à conquista da Presidência. Foi criado um partido de esquerda que deslocou da cena política antigos partidos assim também caracterizados, com destaque para o PCB, que tinham conexões com o sindicalismo do setor público dos anos 1960. Isso significou uma grande mudança na política brasileira, mas levou décadas para ocorrer. Não houve mágica.
A campanha das Diretas Já foi iniciada em 1983 e adentrou o ano de 1984. Mobilizou milhões de pessoas. Diferentemente do que ocorre agora, a campanha das Diretas Já teve um (e somente um) objetivo, teve líderes e teve conexão institucional com vários partidos políticos. A emenda Dante de Oliveira, que, depois de 29 anos, restabelecia as eleições diretas para presidente, não foi aprovada em uma votação histórica, no dia 25 de abril de 1984. Os brasileiros só foram votar para presidente em 1989. Tiveram que esperar mais de cinco anos e, mesmo assim, foi uma eleição solteira, na qual não se votou nem para governos estaduais nem para os cargos legislativos. Apenas em 1994 o Brasil teve a primeira eleição para presidente na qual as instituições funcionaram de maneira razoavelmente adequada, ou seja, mais de dez anos depois do primeiro comício das Diretas Já.
A campanha pelo impeachment de Fernando Collor também teve objetivo específico, líderes e conexão institucional. O objetivo era extremamente pontual: retirar um presidente do cargo. Foi atingido com rapidez. Tratava-se de uma única votação no Congresso Nacional. Ainda assim, o que aquele movimento revelou foi que o Brasil era capaz de se mobilizar para, por meios pacíficos, pressionar pela retirada do governante máximo do poder. Foi um sinal claro de quão democrático o país tinha se tornado. Não custa lembrar que isso aconteceu nos idos de 1992.
Na última eleição nacional geral, o PT elegeu o presidente pela terceira vez consecutiva, o PSDB manteve seu longo domínio no Estado de São Paulo, Aécio Neves elegeu seu sucessor em Minas, Sérgio Cabral foi reeleito governador no Rio de Janeiro e o mesmo ocorreu com os governadores dos três maiores Estados do Nordeste - Jacques Wagner na Bahia, Eduardo Campos em Pernambuco e Cid Gomes no Ceará. Reeleger governadores e manter no poder o mesmo partido é sinal de que os eleitores aprovam seus governantes.
Hoje, ninguém afirma que o Brasil está em decadência econômica. Na época em que José Sarney e Collor eram presidentes, nada se esperava do futuro do país. Agora, nada se teme. A situação econômica da população vem melhorando sensivelmente já há vários anos. Houve uma explosão de consumo entre aqueles que nunca tinham entrado em um avião, adquirido um carro ou frequentado uma academia de ginástica. O crescimento econômico pode ser maior ou menor nesse ou naquele ano, mas já faz tempo que o Brasil não entra em um ciclo de recessão. O desemprego atingiu os níveis mais baixos desde que o IBGE iniciou a série de dados. Diante disso, como compreender os atuais protestos? De um lado, governantes eleitos há menos de três anos; de outro, um longo período de prosperidade econômica.
É justamente por isso que os protestos estão ocorrendo. Há um ditado que reflete bem o que estamos passando: "Dá a mão, quer o braço". A situação da população melhorou em vários aspectos. A vida dentro de casa ficou melhor com a compra de vários bens duráveis e semiduráveis, o acesso a novos serviços foi ampliado, as oportunidades de emprego melhoraram, os governantes atenderam às expectativas dos eleitores e foram reeleitos. Isso é a mão.
A população agora quer o braço. Aquele que comprou seu primeiro carro não tem recursos suficientes para abastecê-lo a ponto de utilizá-lo diariamente. Por isso, tem que andar em ônibus lotados durante a semana. Quem hoje é capaz de colocar um filho na universidade, algo impensável alguns anos atrás, quer que o jovem não tenha somente emprego ao se formar, mas oportunidades crescentes de melhoria. A expectativa de vida aumentou muito por causa da enorme redução das doenças infecto-contagiosas, mas é preciso mais, é preciso ter acesso rápido a oftalmologistas, cardiologistas e outros especialistas, não apenas para viver mais, mas também para viver melhor.
À medida que cresce a prosperidade e aumenta a escolaridade, as pessoas se tornam mais insatisfeitas e inquietas, e o descontentamento público aumenta. Aguentava-se com paciência a pobreza, como se fosse inevitável. Quando as pessoas notam que não se trata de uma situação inevitável, logo surge a ideia de se livrar dela imediatamente. O que se aguentava com paciência torna-se insuportável assim que a situação melhora. Quando o mal diminui, aumenta a sensibilidade a ele. Quem primeiro detectou esse fenômeno foi o grande pensador conservador Alexis de Tocqueville em seu clássico "O Antigo Regime e a Revolução".
A população quer mais igualdade, não apenas de renda, algo que já vem ocorrendo, mas no tratamento perante as leis. Os símbolos são parte central da política. A população sente-se explorada pelos políticos, não apenas por causa da má qualidade da saúde, da educação e dos transportes, mas porque a simbologia do mundo político não é frugal. Nossos políticos habitam ou trabalham em palácios: Palácio do Planalto, Palácio da Alvorada, Palácio dos Bandeirantes, Palácio Guanabara. É muito palácio. Nos Estados Unidos, o presidente trabalha e mora em uma casa que é branca. Nossas autoridades, quando vão a estádios de futebol, ficam em camarotes climatizados, são servidas por garçons que lhes oferecem comidas e bebidas a que dificilmente o eleitor médio tem ou terá acesso no curto prazo. Todos aqui estranham quando Obama é fotografado comendo hambúrguer em uma lanchonete de fast food. Consideram isso demagogia. Isso é simbologia da igualdade.
Essa simbologia precisa ser utilizada para que os políticos mostrem que os recursos públicos estão sendo aplicados com maior eficiência (se não são, precisam ser). Isso significa combater a corrupção, melhorar a gestão, reduzir o desperdício e muitas outras medidas dessa natureza. Estudos acadêmicos de boa qualidade mostram que isso está sendo feito, não no ritmo que os manifestantes esperam, mas no ritmo que o sistema político permite. O pensamento mágico não funciona aqui. Ninguém gera eficiência ou combate corrupção da noite para o dia. Lamentavelmente, isso é frustrante, mas é como o mundo realmente é.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". E-mail: alberto.almeida@institutoanalise.comwww.twitter.com/albertocalmeida

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