O Brasil é um país extremamente sujeito ao
pensamento mágico. Essa forma de pensar ocorre quando as pessoas acreditam na
relação entre a realização de certos rituais e a obtenção de determinadas
recompensas. A mais evidente em nossa vida privada é a crença de que rezas,
orações e bênçãos sobre o doente acabarão por trazer a cura. Trata-se de um
pensamento mágico muito evidente, claro e direto. Há, contudo, formas mitigadas
de pensamento mágico. Estamos diante delas em inúmeras análises sobre os
protestos dos últimos dias e seus resultados. Há quem já tenha afirmado que o
Brasil mudou apenas em virtude de uma ou duas semanas de manifestações.
Um segmento importante da mídia anunciou, logo após
os atentados do 11 de Setembro, que dali em diante o mundo mudaria, não seria
mais o mesmo. Aliás, a mudança mais evidente na vida das pessoas depois daquele
episódio foi o aumento do rigor nos check-ins e embarques de voos
internacionais e voos domésticos nos Estados Unidos. O mundo não mudou. Aquelas
análises não passavam de uma versão do pensamento mágico.
Agora, mais uma vez, o pensamento mágico se
manifesta em análises sobre um fenômeno social e político. Afirmam os crentes
no não observável que o Brasil pós-protestos será diferente do Brasil
pré-protestos. Protestos são rituais que, como muitos acreditam, uma vez
realizados, resultam na obtenção de alguma graça. No caso, a graça não será a
cura de uma doença de uma pessoa específica, mas de uma nação inteira, a doença
do mau uso dos recursos públicos, da exploração da população pelos políticos e
coisas semelhantes. Ora, quem acredita que as coisas vão ocorrer assim fará
melhor se diminuir logo suas expectativas, porque a frustração tenderá a ser
grande.
O Brasil já teve inúmeras manifestações que
mobilizaram um imenso contingente de pessoas. Nenhuma resultou em mudança
imediata, em algo que se assemelhe a uma graça divina. Todas, porém, foram
episódios de um grande processo estrutural de transformação. Muitas mudanças
desejadas só vieram a ocorrer depois de meia, uma ou mais décadas. As greves do
ABC, no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980, foram resultado da lenta
transformação pela qual o Brasil passara nas duas décadas anteriores:
formara-se nesse período uma grande massa crítica de trabalhadores do setor
privado, que se organizaram em sindicatos. Pela primeira vez, o Brasil tinha
sindicalismo do setor privado industrial.
O sindicalismo que agitou as massas nos anos 1960
era do setor público. Tutelado, portanto, pelo governo. As reformas de base de
João Goulart foram defendidas por sindicatos que ou representavam diretamente
funcionários públicos, ou representavam categorias que dependiam de recursos do
governo para obter aumentos salariais. Não foi isso que ocorreu em São Bernardo
do Campo e em municípios vizinhos quando Lula se tornou o principal líder
sindical daquele período.
As greves tampouco resultaram em mudanças
imediatas, mas permitiram que o PT fosse fundado e iniciasse sua trajetória
eleitoral rumo à conquista da Presidência. Foi criado um partido de esquerda
que deslocou da cena política antigos partidos assim também caracterizados, com
destaque para o PCB, que tinham conexões com o sindicalismo do setor público
dos anos 1960. Isso significou uma grande mudança na política brasileira, mas
levou décadas para ocorrer. Não houve mágica.
A campanha das Diretas Já foi iniciada em 1983 e
adentrou o ano de 1984. Mobilizou milhões de pessoas. Diferentemente do que
ocorre agora, a campanha das Diretas Já teve um (e somente um) objetivo, teve
líderes e teve conexão institucional com vários partidos políticos. A emenda
Dante de Oliveira, que, depois de 29 anos, restabelecia as eleições diretas
para presidente, não foi aprovada em uma votação histórica, no dia 25 de abril
de 1984. Os brasileiros só foram votar para presidente em 1989. Tiveram que esperar
mais de cinco anos e, mesmo assim, foi uma eleição solteira, na qual não se
votou nem para governos estaduais nem para os cargos legislativos. Apenas em
1994 o Brasil teve a primeira eleição para presidente na qual as instituições
funcionaram de maneira razoavelmente adequada, ou seja, mais de dez anos depois
do primeiro comício das Diretas Já.
A campanha pelo impeachment de Fernando Collor
também teve objetivo específico, líderes e conexão institucional. O objetivo
era extremamente pontual: retirar um presidente do cargo. Foi atingido com
rapidez. Tratava-se de uma única votação no Congresso Nacional. Ainda assim, o
que aquele movimento revelou foi que o Brasil era capaz de se mobilizar para,
por meios pacíficos, pressionar pela retirada do governante máximo do poder.
Foi um sinal claro de quão democrático o país tinha se tornado. Não custa
lembrar que isso aconteceu nos idos de 1992.
Na última eleição nacional geral, o PT elegeu o
presidente pela terceira vez consecutiva, o PSDB manteve seu longo domínio no
Estado de São Paulo, Aécio Neves elegeu seu sucessor em Minas, Sérgio Cabral
foi reeleito governador no Rio de Janeiro e o mesmo ocorreu com os governadores
dos três maiores Estados do Nordeste - Jacques Wagner na Bahia, Eduardo Campos
em Pernambuco e Cid Gomes no Ceará. Reeleger governadores e manter no poder o
mesmo partido é sinal de que os eleitores aprovam seus governantes.
Hoje, ninguém afirma que o Brasil está em
decadência econômica. Na época em que José Sarney e Collor eram presidentes,
nada se esperava do futuro do país. Agora, nada se teme. A situação econômica
da população vem melhorando sensivelmente já há vários anos. Houve uma explosão
de consumo entre aqueles que nunca tinham entrado em um avião, adquirido um
carro ou frequentado uma academia de ginástica. O crescimento econômico pode
ser maior ou menor nesse ou naquele ano, mas já faz tempo que o Brasil não
entra em um ciclo de recessão. O desemprego atingiu os níveis mais baixos desde
que o IBGE iniciou a série de dados. Diante disso, como compreender os atuais
protestos? De um lado, governantes eleitos há menos de três anos; de outro, um
longo período de prosperidade econômica.
É justamente por isso que os protestos estão
ocorrendo. Há um ditado que reflete bem o que estamos passando: "Dá a mão,
quer o braço". A situação da população melhorou em vários aspectos. A vida
dentro de casa ficou melhor com a compra de vários bens duráveis e
semiduráveis, o acesso a novos serviços foi ampliado, as oportunidades de
emprego melhoraram, os governantes atenderam às expectativas dos eleitores e
foram reeleitos. Isso é a mão.
A população agora quer o braço. Aquele que comprou
seu primeiro carro não tem recursos suficientes para abastecê-lo a ponto de
utilizá-lo diariamente. Por isso, tem que andar em ônibus lotados durante a
semana. Quem hoje é capaz de colocar um filho na universidade, algo impensável
alguns anos atrás, quer que o jovem não tenha somente emprego ao se formar, mas
oportunidades crescentes de melhoria. A expectativa de vida aumentou muito por
causa da enorme redução das doenças infecto-contagiosas, mas é preciso mais, é
preciso ter acesso rápido a oftalmologistas, cardiologistas e outros
especialistas, não apenas para viver mais, mas também para viver melhor.
À medida que cresce a prosperidade e aumenta a
escolaridade, as pessoas se tornam mais insatisfeitas e inquietas, e o
descontentamento público aumenta. Aguentava-se com paciência a pobreza, como se
fosse inevitável. Quando as pessoas notam que não se trata de uma situação
inevitável, logo surge a ideia de se livrar dela imediatamente. O que se
aguentava com paciência torna-se insuportável assim que a situação melhora.
Quando o mal diminui, aumenta a sensibilidade a ele. Quem primeiro detectou
esse fenômeno foi o grande pensador conservador Alexis de Tocqueville em seu
clássico "O Antigo Regime e a Revolução".
A população quer mais igualdade, não apenas de
renda, algo que já vem ocorrendo, mas no tratamento perante as leis. Os
símbolos são parte central da política. A população sente-se explorada pelos
políticos, não apenas por causa da má qualidade da saúde, da educação e dos
transportes, mas porque a simbologia do mundo político não é frugal. Nossos
políticos habitam ou trabalham em palácios: Palácio do Planalto, Palácio da
Alvorada, Palácio dos Bandeirantes, Palácio Guanabara. É muito palácio. Nos
Estados Unidos, o presidente trabalha e mora em uma casa que é branca. Nossas
autoridades, quando vão a estádios de futebol, ficam em camarotes climatizados,
são servidas por garçons que lhes oferecem comidas e bebidas a que dificilmente
o eleitor médio tem ou terá acesso no curto prazo. Todos aqui estranham quando
Obama é fotografado comendo hambúrguer em uma lanchonete de fast food.
Consideram isso demagogia. Isso é simbologia da igualdade.
Essa simbologia precisa ser utilizada para que os
políticos mostrem que os recursos públicos estão sendo aplicados com maior
eficiência (se não são, precisam ser). Isso significa combater a corrupção,
melhorar a gestão, reduzir o desperdício e muitas outras medidas dessa
natureza. Estudos acadêmicos de boa qualidade mostram que isso está sendo
feito, não no ritmo que os manifestantes esperam, mas no ritmo que o sistema
político permite. O pensamento mágico não funciona aqui. Ninguém gera
eficiência ou combate corrupção da noite para o dia. Lamentavelmente, isso é
frustrante, mas é como o mundo realmente é.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é
diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
E-mail: alberto.almeida@institutoanalise.comwww.twitter.com/albertocalmeida
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