terça-feira, 30 de julho de 2013

Um fetiche acompanha os protestos


Por Alberto Carlos Almeida

É comovente ver milhares de brasileiros, se não milhões, nutrindo a crença de que a recente onda de protestos vai mudar tudo. Muitos afirmam que passaram a se orgulhar do Brasil exatamente por causa dos protestos. Dizem que, antes das manifestações, se deparavam com um país de pessoas acomodadas e que agora tudo será diferente. O brasileiro mostrou que tem capacidade de expressar sua indignação contra políticos que exploram a população, que cobram impostos elevados, roubam, não vão presos e oferecem serviços públicos de baixíssima qualidade. Há a crença de que as manifestações e os protestos, ao pressionarem os políticos, terão o poder de alterar esse estado de coisas.

Nada mais clássico em termos de protestos populares que supostamente resultaram em mudanças do que a Revolução Francesa. Os fetichistas das manifestações têm por obrigação, a partir de agora, prestar reverência a toda e qualquer revolução, em particular àquela que derrubou o feudalismo e escancarou as portas da sociedade burguesa. As revoluções são, por definição, o ápice dos protestos populares que resultam em mudanças rápidas.





Contudo, os fetichistas do povo nas ruas esquecem que o que a Revolução Francesa fez também foi feito por todos os demais países europeus sem revolução alguma. A grande obra, se não única, da Revolução Francesa foi a abolição das instituições feudais. Isso também foi feito pela Grã-Bretanha, Portugal, Espanha e Alemanha sem que tivesse sido necessária qualquer revolução. O ímpeto dos revolucionários franceses não modificou (até hoje é assim) várias instituições, como é o caso da centralização política e administrativa do país. Além disso, não muito tempo depois da Revolução Francesa, veio a Restauração, quando várias instituições do Antigo Regime voltaram à cena.

O que a Revolução Francesa fez teria ocorrido de qualquer maneira, com ou sem revolução. Talvez o processo de mudança tivesse sido um pouco mais lento, mas teria sido feito a passos firmes, sem retrocesso e, o que é mais importante, sem o sacrifício de milhares de vidas e sem o risco de abolir instituições que já vinham funcionando há décadas e séculos. Os britânicos seguiram caminho alternativo: em vez de revolucionarem suas instituições, acabaram buscando reformá-las incrementalmente. Não por acaso, desenvolveram as duas instituições que comandam o mundo moderno, a democracia parlamentar e a economia de mercado.

Revoluções tendem a ser inúteis. Em geral, causam milhares de mortes, muitas vezes milhões, e instauram regimes que frequentemente são abolidos depois de anos, como foram os casos da Rússia e da China, e como serão muitos outros casos. Protestos e manifestações são versões mitigadas das revoluções.

Em qualquer onda de protestos, a turba que vai às ruas é absolutamente desinformada das minúcias e tecnicalidades que envolvem as decisões políticas. No caso do Brasil, as ruas têm sido ocupadas por jovens que têm pouca ou nenhuma experiência de vida, sequer são capazes de se sustentar economicamente. São pessoas completamente ignorantes de como se toca uma empresa, um negócio ou a administração pública. Ainda assim, têm o direito - isso é a democracia - de exigir mudanças imediatas da situação atual. Todavia, uma coisa é ter o direito de se manifestar; outra é se sentir no direito de ter suas reivindicações atendidas com rapidez. Temos um ditado que expressa bem a cautela que devemos ter quando se trata de mudanças: calma, que o buraco é mais embaixo.

O efeito imediato das manifestações foi uma herança fiscal maldita. Compreensivelmente, prefeitos e governadores decidiram não conceder aumentos para as passagens de transporte público. É óbvio que o recurso que não virá da majoração de preços terá que vir de algum outro lugar: impostos mais elevados, redução de recursos para outras áreas, como saúde e educação. O governo do Estado de São Paulo decidiu não aumentar o preço dos pedágios. Se tivesse feito isso, é bem provável que a turba de manifestantes desinformada destruísse todas as praças de pedágio do Estado. O resultado, todos sabemos: as concessionárias das estradas tiveram sua remuneração aumentada, o contrato foi cumprido neste aspecto, mas às custas de recursos orçamentários que deixarão de ir para outras áreas de atuação do governo. Alguém tem que pagar a conta, isso é algo que os manifestantes ignoram completamente.

Eis a fantástica herança deixada até agora pelas manifestações: uma restrição fiscal que só será resolvida, se realmente for, depois de muitos anos. A situação ficará ainda mais grave porque os governantes, com medo de novos protestos, dificilmente concederão aumento das passagens no ano eleitoral de 2014. Os manifestantes estão obrigando seus representantes a criar um problema cuja conta será paga nos anos seguintes.

A coisa pode piorar ainda mais. Os manifestantes são contra deputados e senadores terem direito ao voto secreto em algumas decisões parlamentares. Ignoram, porém, que o voto secreto é desejável em várias situações, nas quais, se o voto fosse aberto, os parlamentares seriam pressionados indevidamente pelo Poder Executivo. Esse é o caso da escolha do presidente do Banco Central e de diretores de agências reguladoras. Suponhamos que a pressão dos manifestantes seja inteiramente admitida por senadores e deputados. Se isso for feito, vamos piorar nossas instituições políticas. Afinal, como afirmado anteriormente, a turba que vai às ruas ignora completamente os detalhes da administração pública. Mais grave ainda, ignora inteiramente que as instituições que existem são assim justamente porque têm acumulado em seu interior um saber prático, muitas vezes secular. Abolir esse edifício de um momento para outro pode resultar mais em prejuízos do que em benefícios.

Alguns podem argumentar que as manifestações resultaram na imediata votação e rejeição da indesejável PEC 37, que retirava poder de investigação do Ministério Público. O contra-argumento é simples. Talvez a PEC 37 tivesse sido rejeitada mesmo sem os protestos. Jamais saberemos. O que sabemos é o preço fiscal pago para acelerar uma decisão que poderia ter sido a mesma.

As mudanças que nossos manifestantes pleiteiam já vêm ocorrendo há décadas. Eles não sabem disso. Falta-lhes qualquer tipo de sofisticação intelectual para compreender e ver que não se muda um país da noite para o dia e que coisas como o combate à corrupção e melhoria dos serviços públicos levam décadas. Anos atrás, a educação pública era elitizada. Aqueles que eram treinados pela escola pública, como no Colégio Pedro II, no Rio, faziam isso às custas de milhões de pessoas que habitavam as áreas rurais do país e que nunca entraram em uma sala de aula. O ensino básico foi universalizado, e isso foi um grande avanço. Depois, vieram programas para diminuir a evasão do ensino médio e para ampliar o acesso ao ensino superior.

O Brasil melhorou nos últimos 20 anos, na saúde, na educação, na infraestrutura, em todas as áreas. Talvez o ritmo tenha sido maior em umas áreas e menor em outras. Pode ser que não tenha melhorado tanto quanto o desejável. Melhorou, porém, e continuará melhorando. Contudo, os manifestantes não valorizam isso. Eles transformaram o Brasil em "tabula rasa" do fracasso e da inépcia, como se eles próprios também fossem incapazes de pressionar por melhoras. Pobre destino de um país que se torna refém de manifestantes.
Manifestações, protestos e até mesmo o vandalismo fazem parte da democracia. São salutares (até mesmo o vandalismo) como instrumento de pressão. Todavia, uma elite política acovardada, medrosa e apavorada diante disso em nada contribuirá para que continuemos a aperfeiçoar nossas instituições.

Aliás, quanto a isso, é estarrecedora a irresponsabilidade de um segmento da elite ao apoiar as manifestações sob o argumento velado de que podem levar o PT a ser derrotado nas eleições de 2014. Suponhamos que isso venha a ocorrer e que a candidata vencedora seja aquela que melhor encarna o espírito das ruas, Marina Silva. Terá sido uma mudança impressionante, graças ao poder das ruas. Mas será que isso é verdade, de fato? Claro que não. Marina terá que governar com o apoio de todos os partidos de centro, dentre os quais o velho PMDB. Isso significa que peemedebistas de grosso calibre político vão ocupar ministérios de seu governo supostamente de mudança e de renovação.

A agenda dos manifestantes e dessa fatia irresponsável da elite esbarra em nossas instituições, esbarra em nada mais nada menos que no Brasil. O PMDB é fruto do Brasil, o presidencialismo de coalizão expressa nossa cultura, nosso jeito de ser. Será impressionante ver Marina, neófita em assuntos do Poder Executivo e sem pertencer a um partido grande e sólido, nas mãos dos mais capazes caciques políticos de nossos partidos políticos. Duvido que isso resulte em renovação de verdade.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
alberto.almeida@institutoanalise.com 
 www.twitter.com/albertocalmeida

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