sábado, 14 de setembro de 2013

Os médicos estrangeiros não querem dinheiro



Alberto Carlos Almeida
Uma das indagações mais importantes que surge quando vemos as organizações que representam os médicos brasileiros reagindo à entrada de médicos estrangeiros diz respeito ao erro médico. Não sabemos, por exemplo, se o erro médico no Brasil é maior ou menor do que nos Estados Unidos ou na Europa. Tampouco temos informações claras acerca de como são investigados os erros médicos e qual é a incidência de punições. Caso o corporativismo seja predominante, o resultado disso é que médicos acabam por proteger médicos, que eventuais erros médicos são negligenciados e os seus supostos perpetradores continuam a exercer sua profissão. Seria, portanto, muito bom para os cidadãos brasileiros que os Conselhos Regionais de Medicina e também o Conselho Federal tornassem o mais público possível todas as investigações de erros médicos assim como seus respectivos resultados.
Aliás, o erro médico foi objeto de uma declaração recente do presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, o médico João Batista Gomes Soares. Ele afirmou que os médicos brasileiros não deveriam servir de preceptor para cubanos. Em suas próprias palavras: "É não ficar emendando atendimento realizado por cubano. Nós, médicos brasileiros, não fomos contratados para ser padrinhos de médico cubano ou qualquer outro estrangeiro que venha através de medida provisória". A declaração de Soares, em particular na menção velada ao erro médico, entra na velha tradição brasileira de "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". Os médicos brasileiros são amigos, assim o eventual erro por eles cometido pode vir a ser emendado. Aliás, diante dessa declaração não se deve estranhar a pouca discussão existente no Brasil sobre os erros médicos e suas punições. Há quem considere que no Brasil aplica-se com frequência a máxima de que "a cirurgia foi um sucesso, mas o paciente morreu". Já para os médicos estrangeiros, segundo Soares, não restaria emenda ao eventual erro.




O corporativismo das entidades representativas dos médicos é incompreensível quando analisamos o perfil dos médicos formados no Brasil e o ambiente ao qual eles estão submetidos, comparado às mesmas características dos estrangeiros que aqui desembarcaram. Os médicos brasileiros formados em faculdades privadas investem muitos recursos financeiros em suas carreiras. Somando-se a mensalidade da faculdade com as demais despesas relacionadas ao curso não será surpreendente se o gasto mensal atingir a casa dos R$ 10 mil. Mesmo que seja a metade disto, trata-se de um investimento grande cujo prazo de maturação é bem longo. Um médico dificilmente começa a exercer plenamente sua profissão antes dos 30 anos de idade. São de oito a dez anos de investimento elevado.
Uma vez no mercado de trabalho, no Brasil, ele busca ter um padrão de vida razoável. Isso inclui, dentre outras coisas, escola particular para os filhos e plano de saúde privado. Os médicos brasileiros formados em seu próprio país saem de uma faculdade com uma dupla pressão: para amortizar o investimento familiar e para buscar um padrão de vida de classe média. Isso explica, em grande medida, porque eles não vão para as regiões mais longínquas do país. Isso explica porque nossos médicos dificilmente atendem às populações mais pobres.
Os médicos formados em países europeus e em Cuba foram socializados em um ambiente inteiramente diverso do nosso. Em muitos países o ensino universitário público provê a maior parte dos profissionais. Cuba e as ex-repúblicas da antiga União Soviética, assim como a Rússia, são exemplos extremados disso. Aliás, esses países são pontos fora da curva na oferta de médicos per capita vis-à-vis seu PIB per capita - são praticamente campeões mundiais nesse indicador. São os melhores exportadores de médicos que pode existir.
Onde o ensino da medicina é predominantemente estatal o exercício da profissão também o é. Os médicos e suas famílias na Europa e em Cuba investiram bem menos em sua formação do que no Brasil. Além disso, depois de formados eles não vão precisar pagar ensino e saúde particulares para que tenham um padrão de vida de classe média. Eles, consequentemente, não estão submetidos à dupla pressão de nosso recém-formado doutor em medicina. É por isso que cubanos, espanhóis, portugueses, argentinos e outros médicos estrangeiros desembarcaram no Brasil afirmando que para eles dinheiro não importa. De fato, a pressão financeira a que foram submetidos em sua carreira foi bem menor do que os médicos brasileiros formados no Brasil. Trata-se de uma declaração genuína, verdadeira.
É justamente por isso que eles se dispõem a trabalhar nas regiões mais pobres e distantes do Brasil, em lugares que eles muito dificilmente formarão uma carteira de potenciais clientes para eventualmente montar um consultório. Os médicos estrangeiros, pelo menos até o dia em que desembarcaram no Brasil, jamais foram submetidos a essa pressão.
Os dados da Organização Mundial de Saúde mostram que o sistema de saúde menos estatal do mundo, o americano, tem 2,422 médicos para cada grupo de mil habitantes. No Brasil há, segundo essa mesma fonte, 1,764 médicos para cada mil habitantes e no Chile menos ainda, 1,026 para cada grupo de mil habitantes. Na medida em que o sistema de saúde fica mais estatal, aumenta a quantidade de médicos por mil habitantes. Na Alemanha essa proporção é de 3,689; na Itália é 3,486, na França é 3,447 e na Dinamarca é 3,424. Os países campeões de oferta de médicos per capita são também os campeões de sistema de saúde estatal. Cuba está em primeiro lugar, com 6,723 médicos para cada grupo de mil habitantes seguido de Grécia, Bielorrússia, Áustria, Geórgia e Rússia. Portugal e Espanha não ficam muito atrás.
O grande desafio do Brasil é aumentar a oferta de médicos para a população mais pobre. Isso significa aumentar a presença estatal no provimento desse serviço. Os Estados Unidos são, em muitas coisas, uma exceção difícil de ser seguida. Dependendo dos valores sociais, não apenas difícil, mas também indesejável. Trata-se de uma sociedade cuja gênese está fundamentada em um grupo de pessoas de classe média, razoavelmente bem escolarizadas, e fanáticos religiosos. Desde o início, os EUA foram uma sociedade de classe média. É compreensível, portanto, que a ideologia dominante daquele país afirme que as razões do sucesso e do fracasso estão no indivíduo, no seu mérito ou na sua incapacidade.
Sociedades de matriz aristocrática, como é o caso do Brasil e dos países da Europa continental, são mais fortemente divididas entre a ideologia individualista e a que explica o sucesso e o fracasso pela condição social originária. Ora, é difícil não considerar que os negros no Brasil não ocupam posição de comando e destaque também por conta de terem uma linha de largada mais atrás do que os brancos. Trata-se de uma ideologia (a que relaciona o sucesso individual à condição social) que encontra respaldo na história do país e em sua estrutura social. Assim, há pessoas que dificilmente terão acesso a serviços de saúde pagando do próprio bolso, mas apenas graças à ação do governo. Em português claro, a maioria dos brasileiros não tem renda disponível suficiente para pagar privadamente por serviços de saúde. Ou seja, não adianta querer importar para o Brasil o modelo americano, o que funciona lá, ao menos no que tange a essa questão, não funciona cá.
Os dados da Organização Mundial da Saúde mostram que os países da Europa continental - Alemanha, França, Itália, Bélgica, Espanha e Portugal - têm mais médicos per capita do que Reino Unido e Estados Unidos, por exemplo. Não sabemos qual modelo será seguido pelo Brasil. O que sabemos, baseado nesses dados, é que na medida em que aumentar o nosso PIB per capita haverá também a tendência de aumentar a oferta de médicos por habitante. Essa oferta hoje é bastante assimétrica, faltam médicos nos grotões e nos locais onde predomina a população mais pobre. Porém, para a infelicidade de muitos elitistas de plantão, os pobres votam. A pressão eleitoral dessa população em favor do aumento da oferta de médicos é crescente. Isso significa que o governo está cada dia mais pressionado a agir no sentido de aumentar a presença estatal no provimento desse serviço.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com

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