segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Os renegados do Vale do Silício que agora querem deter as tecnológicas.

Organização criada por ex-funcionários do Google e do Facebook defende mudanças para acabar com os excessos das grandes empresas do setor e evitar o comportamento viciado do usuário.


Eles eram funcionários de empresas como GoogleFacebook ou Twitter e ocupavam cargos importantes. Um deles chegou a ser consultor pessoal de Mark Zuckerberg. Mas perceberam o prejuízo que o mau uso da tecnologia está causando à humanidade e como as plataformas são estrategicamente projetadas para gerar dependência. Em fevereiro deste ano, oito ex-funcionários das mais poderosas empresas tecnológicas do Vale do Silício lançaram o Center for Humane Technology em San Francisco, uma organização sem fins lucrativos que tem como objetivo conscientizar os usuários sobre os efeitos nocivos da tecnologia em sua saúde e pressionar o Governo dos EUA a endurecer as regulamentações do setor. Sua prioridade é introduzir a ética no desenvolvimento da tecnologia.

“A tecnologia não é neutra e as consequências disso são óbvias. Ela está mudando a nossa forma de conversar, a nossa maneira de pensar e causando estragos em nosso sistema democrático”, disse Tristan Harris, um dos fundadores do projeto, durante uma palestra TED. Harris deixou o cargo de designerético no Google em 2016, onde estudava meios de tornar os produtos menos intrusivos na vida dos usuários, e lançou a plataforma Time Well Spent (tempo bem gasto), agora integrada ao novo projeto. “Com os alertas, o celular diz no que você precisa focar a atenção a cada momento. Precisamos entender que eles podem programar nossas mentes com pequenos pensamentos [na forma de alertas na tela do celular] que não escolhemos”, acrescenta Harris especialista em técnicas de persuasão pela Universidade de Stanford.

 Seu grande aliado no lançamento do centro foi Roger McNamee, investidor de empresas de tecnologia e consultor pessoal de Zuckerberg por vários anos. Em um post publicado na revista Washington Monthly, McNamee diz que, em 2016, já havia alertado o fundador da rede social para o uso indevido que estava sendo feito do Facebook com a publicação de informações errôneas. Sua última conversa foi em 2017, quando já existiam evidências, confirmadas mais tarde, de que hackers russos haviam criado contas falsas para tentar influenciar a opinião pública em favor do então candidato republicano Donald Trump. Seus alertas não foram levados em consideração e Zuckerberg respondeu que o Facebook não era um meio de comunicação nem era responsável pelas ações de terceiros. McNamee decidiu que nunca mais voltaria.

O Center for Humane Technology é uma aliança sem precedentes de ex-funcionários das maiores empresas de tecnologia. A Harris e McNamee se juntaram Justin Rosenstein, criador do botão like no Facebook; Lynn Fox, ex-gerente de comunicação da Apple e do Google, e Sandy Parakilas, diretor de operações no departamento de privacidade do Facebook entre 2011 e 2012.
“É muito complicado fazer as pessoas entenderem por que a tecnologia gera danos”, diz Lynn Fox por telefone de San Francisco. “A falta de controle sobre as redes sociais tem consequências graves, como o aumento de casos de depressão entre adolescentes e a disseminação de transtornos alimentares”, acrescenta Fox, que trabalha na indústria há mais de 25 anos. Nos últimos meses, eles se reuniram com o Google, a Apple e o Facebook para mostrar alguns dos documentos em que estão trabalhando, como um guia ético para desenvolvedores que incluirá dados estatísticos sobre os distúrbios de saúde causados pelo vício em tecnologia e alternativas para o design dos produtos.
Quanto ao Facebook, o grupo denuncia que o algoritmo é projetado para maximizar a atenção dos usuários e as horas que dedicam à plataforma, tempo que está diretamente ligado aos benefícios que a tecnológica obtém com publicidade. “Eles analisam os dados dos usuários e os usam para prever o que os fará reagir de forma mais intensa. Os algoritmos privilegiam mensagens negativas: o medo e o ódio são mais viciantes”, critica McNamee.
Sandy Parakilas, ex-chefe de operações do Facebook, identificou o problema fundamental da rede social. “O modelo de negócios é baseado no crescimento do número de usuários e nas conexões e interações entre eles a fim de aumentar seu banco de dados”, diz por telefone de San Francisco. Ele acredita que, a exemplo de outras empresas de tecnologia como a Microsoft, o Facebook poderia comercializar seu produto e não basear seu faturamento em publicidade. “O Microsoft Word é uma ferramenta pela qual você paga; ninguém está vendendo sua atenção a terceiros, que é o que o Facebook faz”, diz Parakilas. “Para oferecer uma plataforma que atenda às necessidades dos usuários, eles teriam que abrir mão de parte da renda, ser um pouco menos lucrativos, mas não vão fazer isso.”
Parakilas critica a escassez de recursos destinados ao departamento em que trabalhou por mais de um ano no Facebook, encarregado de garantir que a privacidade dos usuários não fosse violada com a inserção de anúncios na plataforma. “Percebi que proteger usuários nunca seria uma das prioridades da empresa; eles estão focados no crescimento econômico e estudando fórmulas para atrair sua atenção.”
O efeito da tecnologia nos jovens tem estado no centro do debate nos EUA nos últimos meses. Em janeiro deste ano, dois grandes investidores de Wall Street pediram que a Apple estudasse os efeitos de seus produtos e projetasse ferramentas mais simples para controle dos pais sobre iPhones e iPads, a fim de limitar o consumo que as crianças fazem desses dispositivos. Em junho, especialistas em pediatria e saúde mental solicitaram que o Facebook desative um serviço de mensagens que a empresa ativou nos EUA para crianças a partir de seis anos.
Algumas empresas do setor já reconhecem a magnitude do problema. O Google anunciou em maio em sua conferência anual de desenvolvedores I/O o lançamento da plataforma Digital Wellbeing (bem-estar digital), que inclui novos recursos no Android destinados a ajudar os usuários a controlar o tempo gasto em diferentes aplicativos e ativar alertas para fazer pausas. Depois de reconhecer que 80% dos pais nos EUA estão preocupados com o consumo que seus filhos fazem da tecnologia —resultado de suas pesquisas—, a empresa reforçou o aplicativo Family Link, que permite que as famílias gerenciem os apps usados pelos filhos, monitorem o tempo que passam na frente da tela ou bloqueiem seu dispositivo remotamente.
A Apple anunciou em junho que ainda este ano vai lançar um novo aplicativo, chamado Screen Time (tempo de tela), que permitirá aos usuários saber quanto tempo dedicam a cada aplicativo, quantas notificações recebem de cada um deles, quantas vezes por dia consultam o celular e acessar um relatório de seus hábitos de uso em comparação com os da média. A nova ferramenta também permitirá que os pais acessem os padrões de comportamento de seus filhos e estabeleçam limites em seus dispositivos móveis.
A pressão do Center for Humane Technology se estende ao plano legislativo. Em Massachusetts, fizeram uma parceria com o senador democrata Ed Markey para propor ao Congresso que o Instituto Nacional de Saúde Infantil e Desenvolvimento Humano examine o papel e o impacto dos dispositivos eletrônicos no desenvolvimento das crianças. Na Califórnia, juntamente com o senador democrata Bob Hertzberg, vão propor a criação de uma plataforma que identifique os bots (contas para divulgação em massa automatizada).


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