Por Alberto
Carlos Almeida
Todos conhecem a frase de
inspiração marxista: "o futebol é o ópio do povo". Marx escreveu, em
1843, na sua "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel", que a
religião era o "ópio do povo". Marx foi muito claro ao afirmar que a
religião era o suspiro da criatura oprimida. Para ele, a classe trabalhadora
não fazia a revolução socialista porque, dentre outras coisas, seu sofrimento
era aliviado pela religião, que prometia uma vida após a morte recompensadora
justamente por que na terra eles eram pobres e oprimidos.
O ópio anestesia. A religião e o futebol, para
alguns, também. Já há muitos anos é parte de diálogos corriqueiros e artigos de
jornais o argumento de que a população pobre brasileira é
"anestesiada" pelo futebol. A recente onda de protestos causou
surpresa para muitos analistas, que, por causa dela, vieram a afirmar que
"o futebol deixou de ser o ópio do povo". As duas afirmações, a de
que o futebol sempre fora e agora deixava de ser um anestésico para o
sofrimento, mostra quanto inúmeros brasileiros desconhecem seu próprio país.
Além disso, mostra como a memória de todos, não apenas do povo, mas também de
segmentos da elite, é curta.
Em 1994, depois de 24 anos sem ganhar uma Copa do
Mundo, o Brasil sagrou-se tetracampeão nos Estados Unidos. Naquele ano, o
futebol teria funcionado como o "ópio do povo", uma vez que o governo
Itamar Franco elegera presidente seu ex-ministro da Fazenda, Fernando Henrique
Cardoso. Apenas quatro anos mais tarde, porém, essa explicação do comportamento
do brasileiro que mistura política e futebol não mais encontraria confirmação.
A seleção brasileira sofreu uma derrota acachapante na final para a França e
acabou por ficar em segundo lugar. Todavia, Fernando Henrique foi reeleito
presidente no primeiro turno.
Em 2002, a visão de que o futebol é o ópio do povo
sofreria novo revés. O Brasil seria pentacampeão na primeira Copa sediada
conjuntamente por dois países, Coreia do Sul e Japão, e mesmo assim o candidato
do governo, José Serra, seria derrotado pela oposição, representada por Lula.
Nas duas eleições subsequentes, o Brasil não se sagrou campeão, a Itália venceu
a Copa de 2006 e a Espanha, a de 2010. Mesmo assim, nesses dois anos o governo
venceu a eleição presidencial, em 2006, com a reeleição de Lula, e em 2010, com
a vitória de Dilma.
Considerando-se as cinco eleições presidenciais
ocorridas desde que Fernando Henrique foi eleito presidente pela primeira vez,
apenas em 1994 o futebol foi o "ópio do povo". Em todas as outras,
ele não anestesiou nem aliviou os efeitos da pobreza. O futebol também não foi
capaz de motivar a população contra o governo, pois, em vários anos de derrotas
em Copas do Mundo, o governo acabou vencendo a eleição presidencial. Assim,
causa enorme espanto que muitas pessoas fiquem surpresas com o fato de a onda
de protestos ter acontecido e atingido seu pico justamente durante a Copa das
Confederações.
No caso da Copa das Confederações, o futebol foi a
"cocaína do povo". Em vez de anestesiar, como faz o ópio, serviu de
excitante, como tendem a fazer os psicotrópicos que estimulam o sistema nervoso
central. É possível que, na ausência de uma Copa das Confederações, os
protestos de junho não tivessem acontecido. Àqueles que desprezam a importância
do futebol na sociedade brasileira recomenda-se a leitura de Roberto Da Matta.
Ele foi o primeiro a mostrar, fundamentado em sólidas evidências empíricas, que
o futebol é para os brasileiros muito mais do que um simples entretenimento e,
provavelmente por isso, foi um dos mais importantes estopins dos protestos de
junho.
O futebol funciona como um elemento crucial para a
socialização de brasileiros nas regras de um jogo. Desde muito cedo, todos nós
aprendemos, independentemente de sermos meninas ou meninos, que há competição
entre diferentes times e que eles disputam, honestamente, dentro de quatro
linhas e têm que respeitar determinadas regras. As regras são claras para todos
e, na medida em que as crianças crescem, aprendem a entender coisas mais
complexas, como é o caso da situação de impedimento. O futebol é a maneira mais
abrangente, democrática, simples, direta, precoce e fácil de ensinar às
crianças que é necessário agir de acordo com um certo conjunto de normas.
O futebol ensina muito mais do que isso. Mostra que
é possível divergir, que é possível ser adversário e conviver pacífica e
respeitosamente. As pessoas convivem em situações de família, de trabalho e de
vizinhança, cada qual com seu time - e, após os resultados de jogos e
campeonatos, os derrotados têm que aceitar a gozação feita pelos vitoriosos. Os
dois lados, vencedores e perdedores, sabem que se trata de uma situação
transitória e que o vencedor de hoje será, com grande probabilidade, o
derrotado de amanhã. A convivência pacífica é a regra, assim como é a aceitação
da gozação. Aprendemos como é possível ser adversário sem ter que se
transformar em inimigo.
O futebol, no Brasil, é o reino por excelência da
meritocracia. Não há jogador que vá a campo porque é puxa-saco do técnico. Ou o
desempenho é permanentemente de excelência ou ele é barrado, e cede lugar a
alguém em melhor forma. Tampouco há espaço para qualquer versão que seja de
nepotismo. Filhos, irmãos ou parentes de jogadores já consagrados que decidem
seguir a mesma carreira do parente célebre precisam mostrar que de fato são
bons de bola para terem um lugar ao sol. É por meio do futebol que aprendemos a
utilizar a régua da meritocracia.
Não é simples entender o papel que o futebol tem em
nossas vidas. Dizia o grande pensador francês Alexis de Tocqueville, quando
abordava os fenômenos sociais e culturais: quanto mais presente uma coisa é,
menos se nota que existe. É assim com o futebol no Brasil. Isso é resumido na
frase "o Brasil é o país do futebol".
A Fifa decidiu organizar uma Copa das Confederações
e uma Copa do Mundo no país do futebol, um lugar onde, em dias de jogos da
seleção, todos param de trabalhar para assistir. Acontece que a Fifa de hoje
não é a mesma Fifa dos anos 1980. A regulação que ela exerce sobre esses
eventos é enorme. As regras da Fifa determinam as características dos estádios,
o que será vendido em seu interior, a maneira de chegar a suas imediações, o
que os torcedores podem ou não fazer quando vão aos jogos, como se conta o
tempo de jogo e até mesmo o formato da rede. Tudo é regulado nos mínimos
detalhes. Fazer isso na Alemanha é aceitável, pois não se trata do país do
futebol. Fazer isso no Brasil significa mexer com todo mundo. Mexeu com o
futebol, "mexeu comigo".
Não foi mero fruto do acaso que a torcida
brasileira tenha decidido quebrar uma das regras da Fifa. O hino nacional só
pode ser tocado, de acordo com tais regras, por um minuto e meio. A torcida
disse para a Fifa o seguinte: "Alto lá, aqui não, aqui você não mexe, o
hino é meu e o futebol é coisa séria, é minha filosofia de vida. Vou cantar o
hino que me representa e ver as pessoas que me representam no campo, mas não
vou fazer dentro de suas regras, vou fazer do meu jeito".
Os protestos têm a ver com o fato de o futebol
mobilizar todos os brasileiros e também, provavelmente, com o fato de a Fifa
ter imposto inúmeras regras que não fazem o menor sentido. É claro que as
causas dos protestos são múltiplas: mau uso dos recursos públicos, simbologia
aristocrática de exercício do poder, impunidade dos políticos, serviços
públicos de baixa qualidade etc. Mas tudo isso contou com um detonador, algo
que diz respeito a todos nós: o futebol e a exigências da Fifa em nossa casa.
Aí é demais.
Recentemente, a Fifa manifestou preocupação com o
que pode vir a ocorrer no Brasil durante a Copa do Mundo. A Fifa não está
acostumada a organizar esse evento no país do futebol. Para minimizar os riscos
de que a Copa do Mundo seja palco de novas manifestações, a Fifa ajudaria muito
se fosse mais flexível em suas inúmeras regras e permitisse que os brasileiros
fizessem uma Copa do Mundo que fosse a cara do Brasil. Quanto mais próximo
disso, menores os riscos da Fifa.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é
diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro".
alberto.almeida@institutoanalise.com
www.twitter.com/albertocalmeida
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