Alberto Carlos Almeida
Diz-se que se faz uma "escolha trágica"
quando se tem que escolher entre duas coisas ruins. Qual seria sua escolha se,
na Copa do Mundo, houvesse as seguintes duas opções?: ou a organização da Copa
é um fracasso ou a seleção brasileira é derrotada pela Argentina na final no
Maracanã. É óbvio que não se trata de acontecimentos excludentes, nem são
excludentes os opostos desses dois fatos. Contudo, a escolha entre essas duas
possibilidades contrasta o que é necessário para que o evento ocorra com o
evento em si. Ambos são valores importantes para os brasileiros. A resposta à
pergunta mostra qual deles é o mais importante, se vencer a Copa ou organizá-la
de maneira primorosa.
Podemos carregar de dramaticidade e de realidade
tais possibilidades. O fracasso da organização de uma Copa do Mundo será sempre
algo controverso, por exemplo, se a métrica for a Alemanha com seu sistema de
transporte que leva aos portões da maioria dos lugares de grande movimento, o
que inclui os estádios. Não será necessário, então, aguardar para avaliar o que
ocorrerá no Brasil. O que denominei fracasso da organização pode ser
caracterizado por engarrafamentos enormes nas cidades onde acontecerão os
jogos. Suponhamos que isso ocorra em 15 a 20 partidas (serão 64, no total). Por
fracasso, entenda-se atrasos em voos que deixarão torcedores frustrados por não
conseguirem ir aos jogos já com os ingressos comprados. Podemos supor que
milhares de torcedores de todas as partidas não conseguirão chegar aos estádios
por causa disso.
Será também um fracasso se acontecer um acidente
aéreo com vítimas fatais por causa do aumento do tráfego de aviões, ou se
vários torcedores estrangeiros forem vítimas de latrocínio ao saírem dos
estádios. Se tudo isto ocorrer simultaneamente, o que, convenhamos, parece
bastante improvável, será a pior organização de Copa de todos os tempos. No fim
disso tudo, suponha-se, o Brasil viria a ser campeão pela sexta vez em uma Copa
do Mundo derrotando por 3 a zero seu adversário na final.
A dramaticidade é facilmente atribuída a uma final
de Copa entre Brasil e Argentina. O primeiro capítulo do drama vem da final de
1950, quando, em nossa casa, o Uruguai nos derrotou. Toda a mídia brasileira e
mundial chamaria a atenção para esse fato. Além disso, no jogo final se
defrontariam dois craques de primeira grandeza, Neymar e Messi. O jogo seria
mais do que dramático. O Brasil poderia vir a fazer o primeiro gol, tal como
foi na final de 50 com o Uruguai, e sofrer o empate aos 35 minutos do segundo
tempo em uma falha do goleiro Júlio César.
Albert Einstein definiu uma vez a relatividade
afirmando que, quando se passa uma hora na presença de uma mulher bonita,
parece que se passou um minuto, e quando se passa um minuto sentado em cima de
uma chapa quente, parece que se passou uma hora. Os dez minutos restantes da
partida seriam os minutos mais longos da vida de todos os brasileiros, quando,
no fim, aos 44 minutos do segundo tempo, Messi acabaria por marcar um gol
duvidoso, validado pelo juiz, mas que minutos depois as câmeras mostrariam ter
sido um gol de mão. A Argentina seria campeã em pleno Maracanã e isso ficaria
escrito, para sempre, nos livros de história. Maradona declararia que a mão de
Deus jamais abandona a Argentina. Tudo isso teria ocorrido em um Copa que seria
avaliada pelos especialistas e pela mídia internacional como um sucesso de
organização.
O fracasso da organização da Copa e a derrota para
a Argentina, ou qualquer outro adversário, na final são duas coisas que nenhum
de nós deseja que ocorra. A questão fundamental é qual desses dois
acontecimentos mobiliza mais nossa rejeição. Creio que seja a derrota da
seleção na partida final do torneio. O fracasso da organização da Copa é da
responsabilidade dos governos. A derrota da seleção é nossa derrota. Sabemos,
não é de hoje, que a seleção nos representa mais do que o governo, qualquer que
seja. Nossa identidade com a seleção é muito maior do que nossa identidade com
os governos e com os políticos. A seleção não faz promessas que não possam ser
cumpridas, a seleção não dá a sensação de que estamos sendo enganados ao
acreditar nela ou explorados ao acompanhá-la e admirá-la. É assim que pensamos.
Acreditamos, ainda que de forma inconsistente, estarmos representados pela
genialidade de Neymar, pela raça de Thiago Silva e pelo senso de oportunidade
de Fred. Todos nós, brasileiros, em nosso íntimo, cremos que exercemos nossa
genialidade quando enfrentamos as enormes dificuldades da vida, temos raça para
encarar o chefe mal humorado e senso de oportunidade quando vislumbramos a
chance de conquistar a mulher mais cobiçada do pedaço. A seleção está entranhada
em nossas vidas.
Apesar disso, há aqueles que vislumbram na Copa do
Mundo uma oportunidade de protestar contra as injustiças percebidas hoje no
Brasil. O símbolo maior, recentemente mobilizado, em particular por causa da
grande importância que o futebol tem em nossas vidas, é o do gasto
desnecessário com estádios diante da escassez de recursos para combater as
mazelas da saúde pública ou do transporte de má qualidade. A quantidade de
problemas a serem resolvidos é imensa, e a simbologia do mundo político, com a
pletora de escândalos de corrupção e exemplos de mau uso dos recursos públicos,
é a pior possível. O gostar de futebol e o sentir-se representado pela seleção
convivem em plena harmonia com o sentimento generalizado de que o sistema
político é injusto e os políticos exploram a população. Aliás, trata-se de um
sentimento existente não apenas no Brasil, mas em todos os países, inclusive os
desenvolvidos. A Copa do Mundo apenas aguçou essa percepção.
Trata-se de uma percepção que entra, com frequência,
em aparente contradição com as quatro eleições de continuidade que tivemos: em
1994, votou-se no candidato do governo e pela continuidade do Plano Real; em
1998, manteve-se no governo o presidente Fernando Henrique; o mesmo aconteceu
em 2006 com Lula e, em 2010, a maior parte do eleitorado deu continuidade a
governos do PT. Somente em 2002 a eleição teve sentido de mudança. Não bastasse
isso, também em 2010 os eleitorados dos três maiores Estados brasileiros, São
Paulo, Minas e Rio de Janeiro, votaram pela continuidade de seus governos
estaduais. Totalizam pouco menos da metade do eleitorado nacional.
Não bastasse isso, há um consenso amplo, entre
governo e oposição, de que a política econômica tem que ser mantida, assim como
a política social. Ninguém questiona a prioridade que deve ser conferida ao
controle da inflação. Quando isso não acontece, o próprio eleitorado dá um
jeito de corrigir a rota do governo ao diminuir sua aprovação. As políticas que
resultam na redução da desigualdade também não são questionadas. São objeto de
consenso as políticas de redistribuição de renda, o aumento real do salário
mínimo e a necessidade de gerar empregos. Não há quem afirme que essas medidas
e metas não devam ser perseguidas.
Ainda assim, há insatisfação e ela ameaça eclodir
sob a forma de protesto durante a Copa do Mundo. O Brasil tem muitos gargalos e
seu combate exige tempo, muito tempo. Acredito que a onda de protestos iniciada
em meados de 2013 vai perdurar pela próxima década. Haverá picos e vales, mas
um segmento importante de nossa sociedade decidiu ir às ruas. Na medida em que
as pessoas aumentaram sua escolaridade, passaram a questionar mais o destino
dos recursos públicos, passaram a conectar de forma mais clara os impostos
elevados com o desperdício, passaram a conectar mais fortemente a ausência de
solução de determinados problemas com a inépcia histórica de nossa burocracia.
As pessoas foram para as ruas e continuarão indo, para dizer que estão cansadas
de uma simbologia que as distancia dos políticos. Protestam para dizer que
gostariam que os políticos tivessem uma vida mais frugal. Os manifestantes não
sabem, mas têm ido às ruas para protestar pela solução de nossos gargalos.
É impossível afirmar se haverá protestos ou não
durante a Copa do Mundo. Muitos previram que haveria durante a Jornada Mundial
da Juventude, e acabou não acontecendo. Aqueles que são contra o governo têm
previsto que os protestos serão intensos. Os que apoiam o governo dizem que não
haverá protestos, ou que serão mínimos. É fato que a população acredita que
ocorrerão manifestações e que será uma oportunidade de pressionar os políticos
a resolverem de forma mais efetiva os problemas. A população crê que a mídia
internacional, na presença dos protestos, dará ampla cobertura e que isso resultará
em decisões efetivas dos governos.
A simples crença em um fato não o leva a acontecer.
Por outro lado, no caso dos acontecimentos sociais, tal crença pode resultar em
uma profecia que se autocumpre. Contra o governo, estão as expectativas da
população de que ocorrerão manifestações. Está a favor o clima criado pela
mídia em uma Copa do Mundo. Afinal, quem trocará assistir várias vezes ao gol
mais bonito, a análise do erro do juiz, comemorar com os amigos a vitória de
cada partida da seleção, quem trocará isso por acompanhar as notícias negativas
acerca da organização da Copa? Definitivamente, não queremos ser derrotados
pela Argentina.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do
Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
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