sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Copa do Mundo e protestos

Alberto Carlos Almeida

Diz-se que se faz uma "escolha trágica" quando se tem que escolher entre duas coisas ruins. Qual seria sua escolha se, na Copa do Mundo, houvesse as seguintes duas opções?: ou a organização da Copa é um fracasso ou a seleção brasileira é derrotada pela Argentina na final no Maracanã. É óbvio que não se trata de acontecimentos excludentes, nem são excludentes os opostos desses dois fatos. Contudo, a escolha entre essas duas possibilidades contrasta o que é necessário para que o evento ocorra com o evento em si. Ambos são valores importantes para os brasileiros. A resposta à pergunta mostra qual deles é o mais importante, se vencer a Copa ou organizá-la de maneira primorosa.
Podemos carregar de dramaticidade e de realidade tais possibilidades. O fracasso da organização de uma Copa do Mundo será sempre algo controverso, por exemplo, se a métrica for a Alemanha com seu sistema de transporte que leva aos portões da maioria dos lugares de grande movimento, o que inclui os estádios. Não será necessário, então, aguardar para avaliar o que ocorrerá no Brasil. O que denominei fracasso da organização pode ser caracterizado por engarrafamentos enormes nas cidades onde acontecerão os jogos. Suponhamos que isso ocorra em 15 a 20 partidas (serão 64, no total). Por fracasso, entenda-se atrasos em voos que deixarão torcedores frustrados por não conseguirem ir aos jogos já com os ingressos comprados. Podemos supor que milhares de torcedores de todas as partidas não conseguirão chegar aos estádios por causa disso.


Será também um fracasso se acontecer um acidente aéreo com vítimas fatais por causa do aumento do tráfego de aviões, ou se vários torcedores estrangeiros forem vítimas de latrocínio ao saírem dos estádios. Se tudo isto ocorrer simultaneamente, o que, convenhamos, parece bastante improvável, será a pior organização de Copa de todos os tempos. No fim disso tudo, suponha-se, o Brasil viria a ser campeão pela sexta vez em uma Copa do Mundo derrotando por 3 a zero seu adversário na final.
A dramaticidade é facilmente atribuída a uma final de Copa entre Brasil e Argentina. O primeiro capítulo do drama vem da final de 1950, quando, em nossa casa, o Uruguai nos derrotou. Toda a mídia brasileira e mundial chamaria a atenção para esse fato. Além disso, no jogo final se defrontariam dois craques de primeira grandeza, Neymar e Messi. O jogo seria mais do que dramático. O Brasil poderia vir a fazer o primeiro gol, tal como foi na final de 50 com o Uruguai, e sofrer o empate aos 35 minutos do segundo tempo em uma falha do goleiro Júlio César.
Albert Einstein definiu uma vez a relatividade afirmando que, quando se passa uma hora na presença de uma mulher bonita, parece que se passou um minuto, e quando se passa um minuto sentado em cima de uma chapa quente, parece que se passou uma hora. Os dez minutos restantes da partida seriam os minutos mais longos da vida de todos os brasileiros, quando, no fim, aos 44 minutos do segundo tempo, Messi acabaria por marcar um gol duvidoso, validado pelo juiz, mas que minutos depois as câmeras mostrariam ter sido um gol de mão. A Argentina seria campeã em pleno Maracanã e isso ficaria escrito, para sempre, nos livros de história. Maradona declararia que a mão de Deus jamais abandona a Argentina. Tudo isso teria ocorrido em um Copa que seria avaliada pelos especialistas e pela mídia internacional como um sucesso de organização.
O fracasso da organização da Copa e a derrota para a Argentina, ou qualquer outro adversário, na final são duas coisas que nenhum de nós deseja que ocorra. A questão fundamental é qual desses dois acontecimentos mobiliza mais nossa rejeição. Creio que seja a derrota da seleção na partida final do torneio. O fracasso da organização da Copa é da responsabilidade dos governos. A derrota da seleção é nossa derrota. Sabemos, não é de hoje, que a seleção nos representa mais do que o governo, qualquer que seja. Nossa identidade com a seleção é muito maior do que nossa identidade com os governos e com os políticos. A seleção não faz promessas que não possam ser cumpridas, a seleção não dá a sensação de que estamos sendo enganados ao acreditar nela ou explorados ao acompanhá-la e admirá-la. É assim que pensamos. Acreditamos, ainda que de forma inconsistente, estarmos representados pela genialidade de Neymar, pela raça de Thiago Silva e pelo senso de oportunidade de Fred. Todos nós, brasileiros, em nosso íntimo, cremos que exercemos nossa genialidade quando enfrentamos as enormes dificuldades da vida, temos raça para encarar o chefe mal humorado e senso de oportunidade quando vislumbramos a chance de conquistar a mulher mais cobiçada do pedaço. A seleção está entranhada em nossas vidas.
Apesar disso, há aqueles que vislumbram na Copa do Mundo uma oportunidade de protestar contra as injustiças percebidas hoje no Brasil. O símbolo maior, recentemente mobilizado, em particular por causa da grande importância que o futebol tem em nossas vidas, é o do gasto desnecessário com estádios diante da escassez de recursos para combater as mazelas da saúde pública ou do transporte de má qualidade. A quantidade de problemas a serem resolvidos é imensa, e a simbologia do mundo político, com a pletora de escândalos de corrupção e exemplos de mau uso dos recursos públicos, é a pior possível. O gostar de futebol e o sentir-se representado pela seleção convivem em plena harmonia com o sentimento generalizado de que o sistema político é injusto e os políticos exploram a população. Aliás, trata-se de um sentimento existente não apenas no Brasil, mas em todos os países, inclusive os desenvolvidos. A Copa do Mundo apenas aguçou essa percepção.
Trata-se de uma percepção que entra, com frequência, em aparente contradição com as quatro eleições de continuidade que tivemos: em 1994, votou-se no candidato do governo e pela continuidade do Plano Real; em 1998, manteve-se no governo o presidente Fernando Henrique; o mesmo aconteceu em 2006 com Lula e, em 2010, a maior parte do eleitorado deu continuidade a governos do PT. Somente em 2002 a eleição teve sentido de mudança. Não bastasse isso, também em 2010 os eleitorados dos três maiores Estados brasileiros, São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, votaram pela continuidade de seus governos estaduais. Totalizam pouco menos da metade do eleitorado nacional.
Não bastasse isso, há um consenso amplo, entre governo e oposição, de que a política econômica tem que ser mantida, assim como a política social. Ninguém questiona a prioridade que deve ser conferida ao controle da inflação. Quando isso não acontece, o próprio eleitorado dá um jeito de corrigir a rota do governo ao diminuir sua aprovação. As políticas que resultam na redução da desigualdade também não são questionadas. São objeto de consenso as políticas de redistribuição de renda, o aumento real do salário mínimo e a necessidade de gerar empregos. Não há quem afirme que essas medidas e metas não devam ser perseguidas.
Ainda assim, há insatisfação e ela ameaça eclodir sob a forma de protesto durante a Copa do Mundo. O Brasil tem muitos gargalos e seu combate exige tempo, muito tempo. Acredito que a onda de protestos iniciada em meados de 2013 vai perdurar pela próxima década. Haverá picos e vales, mas um segmento importante de nossa sociedade decidiu ir às ruas. Na medida em que as pessoas aumentaram sua escolaridade, passaram a questionar mais o destino dos recursos públicos, passaram a conectar de forma mais clara os impostos elevados com o desperdício, passaram a conectar mais fortemente a ausência de solução de determinados problemas com a inépcia histórica de nossa burocracia. As pessoas foram para as ruas e continuarão indo, para dizer que estão cansadas de uma simbologia que as distancia dos políticos. Protestam para dizer que gostariam que os políticos tivessem uma vida mais frugal. Os manifestantes não sabem, mas têm ido às ruas para protestar pela solução de nossos gargalos.
É impossível afirmar se haverá protestos ou não durante a Copa do Mundo. Muitos previram que haveria durante a Jornada Mundial da Juventude, e acabou não acontecendo. Aqueles que são contra o governo têm previsto que os protestos serão intensos. Os que apoiam o governo dizem que não haverá protestos, ou que serão mínimos. É fato que a população acredita que ocorrerão manifestações e que será uma oportunidade de pressionar os políticos a resolverem de forma mais efetiva os problemas. A população crê que a mídia internacional, na presença dos protestos, dará ampla cobertura e que isso resultará em decisões efetivas dos governos.
A simples crença em um fato não o leva a acontecer. Por outro lado, no caso dos acontecimentos sociais, tal crença pode resultar em uma profecia que se autocumpre. Contra o governo, estão as expectativas da população de que ocorrerão manifestações. Está a favor o clima criado pela mídia em uma Copa do Mundo. Afinal, quem trocará assistir várias vezes ao gol mais bonito, a análise do erro do juiz, comemorar com os amigos a vitória de cada partida da seleção, quem trocará isso por acompanhar as notícias negativas acerca da organização da Copa? Definitivamente, não queremos ser derrotados pela Argentina.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de "A Cabeça do Brasileiro". alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida

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