Maria Cristina Fernandes
O título é o nome de um livrinho escrito 64 anos
antes de Cristo. É de grande utilidade na temporada eleitoral que se inicia.
Políticos, marqueteiros e estrategistas de campanha sempre se serviram dele.
Por razões inversas, o texto também pode ser de grande serventia para o
eleitor.
Sua leitura é especialmente esclarecedora para
saudosistas de um tempo que nunca existiu. Os conselhos de Quinto Túlio Cícero
mostram que política nunca se escreveu com 'p' maiúsculo. Talvez porque seja
feita por gente. Sem conhecê-la, o eleitor se torna presa fácil do discurso de
que só os bem-aventurados são capazes de fazer a política maiúscula, aquela da
mitologia.
O autor é o irmão mais novo de Marco Túlio Cícero,
um advogado de 42 anos com ambição de se tornar cônsul, o mais alto posto da
república romana. Descendem de um rico comerciante do sul de Roma que mandou os
filhos estudar filosofia e oratória na Grécia.
Cícero
enterra a saudade de um tempo que nunca existiu
Marco Túlio torna-se um grande orador nos tribunais
mas, para chegar a cônsul, precisa enfrentar as resistências da aristocracia
fornecedora de dirigentes da república. Quinto manda seu irmão repetir para si
mesmo: "Sou um 'outsider'. Quero ser cônsul. Esta é Roma".
O voto era direto, secreto e masculino, mas o
sistema eleitoral conferia mais peso aos nobres. "Nunca deixe que o tomem
por um populista", diz Quinto Túlio ao traçar a estratégia de aproximação
do irmão com a aristocracia. Deveria ficar claro para os nobres que todo
movimento em direção ao povo se devia a tática eleitoral.
Marco Túlio não deveria se deixar intimidar pelos
concorrentes de sangue azul. Um tinha tido a propriedade confiscada por dívida
e comprara uma escrava para lhe prestar serviços sexuais. Outro matara o
cunhado, molestava jovens garotos e corrompia juízes nos tribunais. Essas
questões não precisam ser explicitadas mas os adversários devem saber que são
conhecidas. Estava lançado aí o primeiro tijolo das fábricas de dossiês.
Esta é a primeira parte da campanha. Em que o
candidato se assenhora de sua ambição e se torna amigo dos mais aquinhoados de
dinheiro e poder para não ser por eles barrado. Numa disputa eleitoral, diz
Quinto, há duas tarefas: assegurar o apoio de seus amigos e ganhar o do
público: "Você ganhará o dos amigos com gentilezas, favores, conexões,
disponibilidade e charme".
Marco Túlio Cícero deve lhes dizer nunca lhes ter
pedido nada antes e que chegara a hora de fazê-lo. "Faça-os saber que se
você ganhar a eleição agora você estará em dívida com eles".
O irmão não deve filtrar aliados pelo caráter. Numa
campanha, diz o irmão, você não deve ter vergonha de cultivar amigos com gente
de quem nenhuma pessoa decente se aproximaria - "Você será um tolo se não
o fizer". Nasciam as diretrizes das megacoalizões eleitorais.
A segunda parte da campanha deve tratar de ganhar o
povo. O primeiro passo é conhecer as pessoas pelo nome. Num eleitorado de 141
milhões a tarefa é em parte feita pela propaganda na TV. Gente do povo é
escolhida a dedo para representar na TV segmentos do eleitorado com quem o
candidato deve mostrar intimidade.
Chamar os eleitores pelo nome não basta. Eles
precisam saber o que vão ganhar com sua eleição. Por isso, Quinto diz que o
irmão não deve ter o pudor de prometer, ainda que mais tarde seja necessário
convencer os eleitores de que não foi possível cumprir o prometido.
O mais prudente, diz Quinto, é ser vago em relação
às promessas. Dizer aos nobres que manterá seus privilégios, aos empresários
que assegurará a estabilidade de seus negócios e ao povo que sempre esteve e
estará ao seu lado. "A parte mais importante da campanha é levar esperança
às pessoas e atrair seus bons augúrios", diz Quinto. Mas seu irmão deveria
saber que não seria capaz de fazê-lo se confiasse facilmente nas pessoas.
"A política é cheia de falsidade, deslealdade e traições".
Marco Túlio Cícero elegeu-se cônsul. Durante seu
governo, um dos adversários derrotados conspirou para derrotá-lo. Cícero
desbaratou a conspiração e persuadiu o Senado a declarar guerra ao adversário. Quinto
foi eleito para o mais alto cargo da magistratura, cargo que só perdia para o
de cônsul, em poder e prestígio. Depois foi governador na província romana que
se tornaria a Turquia. Os irmãos Cícero tinham dominado os códigos para
conquistar e exercer o poder na república romana, mas não sobreviveriam à
guerra civil que daria início ao Império. No ano 43 A.C. seriam assassinados.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras
para o Jornal “Valor Econômico”
Maria Cristina Fernandes é editora de Política e
colunista do Valor desde a fundação do jornal em maio de 2000.
Integrou
a equipe que fundou a revista "Época", publicação da qual foi
repórter especial. Foi editora de Política da "Gazeta Mercantil",
subeditora da revista "Veja" e repórter do "Jornal do
Comércio".
É
formada em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e em História
pela Universidade Federal de Pernambuco. É mestre em Política Comparada pela
Universidade de Paris I e em Política Latino-Americana pela Universidade de
Londres.
E-mail: mcristina.fernandes@valor.com.br
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