segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Por que tanta discussão sobre Transformação Digital e tão pouca ação?

Porque abandonar certas crenças, hábitos e processos do presente, criados no passado, é algo muito difícil, mas não impossível.


O tema Transformação Digital é um tema instigante. Todos falam sobre, mas apenas alguns realizam. E, claro, muitas vozes discordantes aparecem. Mitos e verdades pipocam em todos os cantos. Nesse cenário, vou tentar contribuir para o debate com uma percepção pessoal. Para mim, transformação digital é, sem dúvida nenhuma, impulsionada pelas tecnologias digitais. Mas é muito mais que tecnologia.
Transformação Digital acontece quando a aplicação da tecnologia muda as condições nas quais os negócios são realizados, afetando as expectativas dos clientes, parceiros de negócios e colaboradores. Exemplos emblemáticos são o Uber e o Airbnb. Seus fundadores não criaram nenhuma tecnologia inovadora, mas reconheceram a rápida e ampla adoção dos smartphones e identificaram sua utilidade para a resolução de problemas visíveis como o acesso restrito a táxis e locais para hospedagem. Criaram soluções que facilitaram a vida das pessoas e com isso abriram um novo mercado. Interessante notar, que tanto o setor de táxis quanto o setor  hoteleiro viviam dentro do problema. Faziam parte dele. E, por isso, talvez, foram incapazes de criar a inovação.
Esse é um aspecto interessante do ambiente de negócios. As empresas que fazem parte de um setor olham umas para as outras, comparam-se mutuamente e apenas fazem melhorias incrementais em suas operações. Alguém de fora é que vem perturbar o ambiente, provocando a mudança. Estamos vendo isso acontecer no setor bancário, onde as Fintechs fizeram com que os bancos saíssem de sua zona de conforto e corressem atrás de inovações. Agora todos estão tentando ser digitais. Por que não fizeram o movimento antes? No setor de telecomunicações, o Skype e o WhatsApp provocaram uma ruptura desastrosa na receita das operadoras.
Continuamos a ver isso em todos os lugares. O setor das concessionárias é emblemático. Você compra um automóvel caro e sai de lá apenas com combustível suficiente para chegar no posto mais próximo. Por que? Porque todas fazem a mesma coisa, é a prática do mercado, respondem seus gestores. Nenhuma teve a ideia de entregar o tanque cheio, uma ninharia perto do valor do veículo? Aí chegam os veículos autônomos e a mudança do modelo de venda por uso, e lá se vão as concessionárias.
A chegada dos carros autônomos vai produzir uma onda de choque em diversos setores e as concessionárias serão imensamente afetadas. O modelo de propriedade do carro pode mudar para um modelo de assinatura, em que uma empresa, que pode ser o próprio fabricante, fornece o veículo e toda a manutenção por uma taxa mensal. A conveniência do carro sem motorista pode levar os clientes a buscarem modelos de uso sob demanda, em vez de se comprometerem financeiramente com a aquisição de um carro para utilização exclusiva. E mesmo nos casos em que as pessoas decidem comprar seus carros, a maior eficiência de um carro sem motorista, que não monopoliza o tempo de um motorista humano, pode levar a um a mudança na necessidade de vários membros da família terem um carro.
A leitura do artigo “24 Industries Other Than Auto That Driverless Cars Could Turn Upside Downretrata bem este cenário e mostra que uma inovação tecnológica aplicada a um setor pode reverberar para outros setores, alguns aparentemente longínquos demais para se preocuparem com aquela inovação.
A pergunta é: os executivos das empresas estão observando as mudanças que estão ocorrendo em outros setores, ou estão apenas olhando para seus competidores diretos?
O smartphone afetou várias industrias, acabou com empresas sólidas e de alta tecnologia, que não se moveram na velocidade suficiente para sobreviverem. Um exemplo clássico é a Kodak. Em 1976 ela controlava 85% do negócio de câmeras fotográficas. Em 2008, um ano após o lançamento do iPhone, aquele mercado simplesmente não existia mais. O curioso é que a Kodak inventou a câmera digital, mas a empresa não soube explorar a tecnologia e repensar seu modelo de negócios. Mas o smartphone não afetou drasticamente apenas a Kodak e os demais fabricantes de câmeras analógicas e digitais, mas diversos outros setores entraram em queda livre, como aparelhos de GPS, gravadores de voz, relógios digitais, câmeras e reprodutores de vídeo, reprodutores de música, lanternas, enciclopédia, console de vídeo games e PCs.
Transformação Digital também não é um fato isolado, cataclísmico, que acontece uma única vez. Você transforma sua empresa em uma empresa digital e pronto, pode descansar e curtir a nova vida. É um processo contínuo, que nunca vai terminar. A evolução exponencial da tecnologia vai continuar impulsionado mudanças, permitindo a criação de novos negócios, que por sua vez, vão afetar as empresas digitais. O novo “business as usual” será um ambiente de negócios cada vez mais volátil, incerto, complexo e ambíguo. Isso significa que quando você se adaptar ao ambiente digital de hoje, esse ambiente provavelmente já estará mudado significativamente. Esse cenário turbulento pode ser visto em “These 7 Forces Are Changing the World at an Extraordinary Rate. Queiramos ou não, a velocidade das mudanças de amanhã fará com que hoje pareça que estamos apenas rastejando.
Portanto, a Transformação Digital que falamos hoje deve ser vista como a preparação para a empresa sobreviver e competir no futuro, adaptando-se continuamente a um ambiente em constante mudança. A necessidade de transformação contínua não irá diminuir. Envolverá a varredura contínua do ambiente para reconhecer tendências na evolução tecnológica, experimentação contínua para determinar como efetivamente responder a essas tendências,  e como propagar as experiências bem-sucedidas por toda a empresa.
Portanto, a Transformação Digital, no seu nível mais fundamental, é a capacidade das organizações, seus líderes e funcionários, se adaptarem às mudanças rápidas desenvolvidas pela evolução exponencial das tecnologias digitais.
E porque tanta discussão e pouca ação? No mundo real, quase todas as empresas encontram muitas dificuldades em fazer mudanças em sua cultura, talentos e estrutura organizacional. As organizações geralmente mudam muito mais lentamente do que a tecnologia, e as demandas exigidas pela Transformação Digital não acontecerão sem o esforço intencional para fazê-las acontecer. Além disso, as organizações tendem a se tornar mais estáticas ao longo do tempo, de modo que a adaptabilidade necessária pode ser difícil de manter.
Entendo a dificuldade. Mudar uma empresa é bem diferente do que criar uma empresa. Os hábitos, processos e organização do passado, que construíram a empresa,  estão no presente dela. E esse presente impede, muitas vezes, que a empresa construa seu futuro, por conta das pressões do dia a dia.
Como enfrentar essa situação? Não existem receitas de bolo, embora algumas estratégias sejam de imensa ajuda. Recomendo enfaticamente a leitura do livro  “A Estratégia das 3 Caixas”,  de Vijay Govindarajan, professor do Dartmouth College, publicada no Brasil pela HSM.
Algumas ações podem e devem ser colocadas em prática. Uma delas é prestar atenção à evolução das tecnologias digitais. Não estamos nem perto do fim da disrupção que as tecnologias digitais provocarão nos negócios. As empresas devem periodicamente rever o cenário digital para analisar e entender possíveis mudanças que possam ameaçar seu negócio ou setor. Frases tipo "não somos uma empresa digital" ou "não sou uma pessoa digital" serão apenas frases em lápides.
A velocidade das mudanças está no ponto em que se você não prestar atenção e desenvolver um conhecimento prático do estágio atual das tecnologias digitais, estará apenas garantindo a obsolescência do seu negócio e a sua própria. O líder de uma empresa do futuro, uma empresa exponencial que demanda um líder exponencial,  deverá ter algumas características que muitos líderes atuais não possuem: ser, ao mesmo tempo, futurista,  inovador, tecnologista, humanitário, e, claro, um líder. Recomendo a leitura do artigo “How the Most Successful Leaders Will Thrive in an Exponential World para um detalhamento maior dessas características.
Além disso, crie processos adaptáveis. Transformar digitalmente sua empresa não é suficiente: comece a reconstruir sua organização de forma a adaptar-se às mudanças constantes e inevitáveis. Processos adaptáveis ​​envolvem estruturas organizacionais modulares que podem ser facilmente reconfigurados. A empresa deve ser ágil e adaptativa por natureza. Ser capaz de se reinventar continuamente.
O exemplo da Amazon - “How Jeff Bezos Maintains Amazon’s Killer Company Culture” - é emblemático de uma empresa adaptável. Observem que o fator crucial é a cultura organizacional, que incentiva inovação e, obviamente, permite falhar. Em contraponto, lembro de uma empresa em que fui falar de transformação digital, que mantinha posts na parede com frases tipo “faça certo da primeira vez”... Claramente senti ali que a grande barreira para eles fazerem com sucesso qualquer transformação digital era a cultura arraigada e conservadora.
Faça acontecer. As empresas muitas vezes falam sobre ser digitais, ou tornarem-se mais ágeis, sem realmente fazer algo concreto para isso. Se você quer sobreviver no século 21 terá que investir tempo, energia e dinheiro para se transformar. O futuro, em um mundo de evolução exponencial, não está em um horizonte distante. E não será possível adiar para amanhã a árdua tarefa de moldá-lo. Para chegar ao futuro é necessário construí-lo dia após dia. Isso implica a capacidade de, seletivamente, abandonar certas crenças, hábitos e processos do presente, criados no passado, que ergueram muros intransponíveis para a criação do futuro.
Esperar por muito tempo pode permitir que novos competidores aproveitem essas mudanças e criem uma lacuna entre o que elas passam a oferecer ao mercado e o que você oferece, ampla demais para ser superada. Infelizmente, será seu “Momento Kodak!”.

Por Cezar Taurion, head de Digital Transformation da Kick Ventures e autor de nove livros sobre Transformação Digital, Inovação, Open Source, Cloud Computing e Big Data. Este artigo foi publicado originalmente no CIO.com.br

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